segunda-feira, 7 de setembro de 2015

JOSÉ


      E agora, José? 
              A festa acabou, 
              a luz apagou, 
              o povo sumiu, 
              a noite esfriou, 
              e agora, José? 
              e agora, você? 
              você que é sem nome, 
              que zomba dos outros, 
              você que faz versos, 
              que ama, protesta? 
              e agora, José?


              Está sem mulher, 
              está sem discurso, 
              está sem carinho, 
              já não pode beber, 
              já não pode fumar, 
              cuspir já não pode, 
              a noite esfriou, 
              o dia não veio, 
              o bonde não veio, 
              o riso não veio 
              não veio a utopia 
              e tudo acabou 
              e tudo fugiu 
              e tudo mofou, 
              e agora, José?


              E agora, José? 
              Sua doce palavra, 
              seu instante de febre, 
              sua gula e jejum, 
              sua biblioteca, 
              sua lavra de ouro, 
              seu terno de vidro, 
              sua incoerência, 
              seu ódio - e agora?


              Com a chave na mão 
              quer abrir a porta, 
              não existe porta; 
              quer morrer no mar, 
              mas o mar secou; 
              quer ir para Minas, 
              Minas não há mais. 
              José, e agora?


              Se você gritasse, 
              se você gemesse, 
              se você tocasse 
              a valsa vienense, 
              se você dormisse, 
              se você cansasse, 
              se você morresse... 
              Mas você não morre, 
              você é duro, José!


              Sozinho no escuro 
              qual bicho-do-mato, 
              sem teogonia, 
              sem parede nua 
              para se encostar, 
              sem cavalo preto 
              que fuja a galope, 
              você marcha, José! 
              José, para onde?

              Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Viver Sempre também Cansa



                       Alberto Pimenta, in “Rise of the Ten Tastes Mouth”

Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

 José Gomes Ferreira, Viver Sempre também Cansa

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Discurso do filho da puta


O pequeno filho da puta
é sempre
um pequeno filho da puta;
mas não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho da puta.
no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho da puta.
de resto,
os filhos da puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho da puta.
o pequeno
filho da puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho da puta.
no entanto,
o pequeno filho da puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho da puta.
todos os grandes
filhos da puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
dentro do
pequeno filho da puta
estão em ideia
todos os grandes filhos da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
o pequeno filho da puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho da puta.
é o pequeno filho da puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
de resto,
o pequeno filho da puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho da puta:
o pequeno filho da puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho da puta.

II

o grande filho da puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho da puta,
e não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.

no entanto,
há filhos da puta
que já nascem grandes
e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho da puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande filho da puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho da puta.
por isso
o grande filho da puta
tem orgulho em ser
o grande filho da puta.
todos
os pequenos filhos da puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
dentro do
grande filho da puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos da puta,
diz o
grande filho da puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos da puta,
diz
o grande filho da puta.
o grande filho da puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho da puta.
é o grande filho da puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho da puta,
diz o
grande filho da puta.
de resto,
o grande filho da puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho da puta:
o grande filho da puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,

o grande filho da puta.

Alberto Pimenta

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A História

Nikola Vaptzarov (1909-1942) Bulgária

Nasceu em 1909 em Bonsko (Bulgária). A sua profissão de mecânico permitiu-lhe o contacto com as miseráveis condições de trabalho nas fábricas.Filiou-se no Partido Comunista em 1934 e foi um activo resistente antifascista. Foi preso em Março de 1942. Em 23 de Julho de 1942 foi condenado à morte e abatido na mesma noite, juntamente com 11 outros homens, por um pelotão de fuzilamento alemão. Apesar de nunca ter publicado nenhum livro em vida, é considerado um dos mais importantes poetas búlgaros.
A 3 de Dezembro de 1953, recebeu postumamente o Prémio Internacional da Paz. Uma selecção da sua poesia foi publicada em livro, em 1954, em Londres e a sua poesia já foi traduzida para 98 línguas.



A nós que oferecerás, História,
nas tuas páginas amarelecidas?
Éramos todos gente anónima,
homens de fábricas e escritórios.

Éramos camponeses! Cheirávamos
ao fedor da cebola, do suor.
Sob os nossos bigodes caídos
praguejávamos contra a vida.

Será ao menos reconhecido
que te saciámos de factos
embebidos com abundância
no sangue de milhares de mortos?

Traçarás certamente os contornos
e a substância será excluída.
Ninguém irá decerto descrever
o nosso pobre drama humano.

Os poetas estarão ocupados
a compor rimas de propaganda,
mas a nossa angústia não escrita
vagueará, solitária, no espaço.

Terá sido uma vida a relatar
a nossa? Uma vida a evocar?
Ao pesquisá-la solta-se bolor;
liberta-se venenosa exalação.

Nascíamos algures, pelos campos,
em abrigos de acaso nos silvados;
as nossas mães torciam-se com dores
mordendo os lábios ressequidos.

No Outono morríamos como moscas,
as mulheres, no Dia dos Mortos,
gritavam, mudavam o seu lamento
em cântico só escutado pelos tojos.

Os que entre nós sobreviveram
dobraram a espinha sob o jugo.
Como pobres animais de carga
trabalhámos não importa em quê.

Em casa, os velhos afirmavam:
"Assim foi, assim é e será!"
Furiosos, nós cuspíamos
sobre tão estúpida certeza.

Raivosos, saíamos da mesa,
saíamos correndo, fora, onde
uma esperança nos aflorava
como um hálito luminoso.

Esperávamos, cheios de angústia
no ar sufocante das tavernas!
Íamos para a cama alta noite
depois dos últimos noticiários.

Como as esperanças iludiam!
Pesava-nos um céu de chumbo
e um vento de fogo assobiava:
"Basta, não quero, não aguento!"

Nos teus volumes espessos,
entre as linhas, sob as linhas,
o nosso sofrimento uivará
e manterá o rosto hostil.

Sobre nós, implacavelmente,
a vida abateu pesado punho,
violento, na boca esfomeada...
Por isso a língua é-nos áspera.

Os versos que escrevíamos então
pela noite, em troca de sono,
da rosa não liberam o perfume,
descarnados, secos, agressivos.

Não esperamos prémio dos tormentos.
Até aos pesados in-fólios
que os séculos vão acumulando
as nossas dores nunca chegarão.

Mas ao menos, com palavras simples
revela às multidões do amanhã
destinadas a substituir-nos
que lutámos valorosamente.


               (tradução de  Egipto Gonçalves)


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Mariana Pineda




O famoso poeta espanhol Federico García Lorca recita o seu último poema, mesmo antes da sua execução, durante a guerra civil de Espanha em Agosto de 1936, por um pelotão de fuzilamento fascista.

“Mariana,
Que é o homem sem liberdade?
Sem essa luz harmoniosa e fixa que se sente por dentro?
Como poderia te querer não sendo livre, diz-me?
Como te dar este firme coração se não é meu? Não temas;
Como te dar este firme coração, se não é meu?”


Mariana Pineda foi escrita em 1925. Ela e Federico viveram em épocas onde se produziam grandes mudanças. Ambos amaram Granada e nela viveram, onde acabaram por morrer, inocentes e executados pela ditadura de franco.

Ainda não


Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
.
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
.
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração


António José Forte

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja


                              white crow by marurenai

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja,
que o absurdo, mesmo em curtas doses,
defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!
Se é verdade o aforismo faca afia faca
(não sabemos falar senão figuradamente
sinal de que somos pouco capazes de abstracção).
Se faca afia faca,
então que a faca do absurdo
venha afiar a faca da nossa embotada vontade,
venha instalar-se sobre a lâmina do inesperado
e o dia a dia será nosso e diferente.
Aflições? Teremos muitas não haja dúvida.
Mas tudo será melhor que este dia a dia.
Os povos felizes não têm história, diz outro aforismo.
Mas nós não queremos ser um povo feliz.
Para isso bastam os suíços, os suecos, que sei eu?
Bom proveito lhes faça!
Nós queremos a maleita do suíno,
a noiva que vê fugir o noivo,
a mulher que vê fugir o marido,
o órfão que é entregue à caridade pública,
o doente de hospital ainda mais miserável que o hospital
onde está a tremer, a um canto, e ainda ninguém lhe ligou
nenhuma. Nós queremos ser o aleijado nas ruas, a pedir esmola, a
a bardalhar-se frente aos nossos olhos. Queremos ser o pai
desempregado que não sabe que Natal Dai-nos, meu Deus…
há-de dar aos seus.
Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.
Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.


Alexandre O’Neill

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Conselho de um velho apaixonado

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer
seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa
mais importante da sua vida.

Se os olhares se cruzarem e, neste momento,
houver o mesmo brilho intenso entre eles,
fique alerta: pode ser a pessoa que você está
esperando desde o dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo
for apaixonante, e os olhos se encherem
d'água neste momento, perceba:
existe algo mágico entre vocês.

Se o 1º e o último pensamento do seu dia
for essa pessoa, se a vontade de ficar
juntos chegar a apertar o coração, agradeça:
Algo do céu te mandou
um presente divino : O AMOR.

Se um dia tiverem que pedir perdão um
ao outro por algum motivo e, em troca,
receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos
e os gestos valerem mais que mil palavras,
entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste,
se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa
sofrer o seu sofrimento, chorar as suas
lágrimas e enxugá-las com ternura, que
coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida.

Se você conseguir, em pensamento, sentir
o cheiro da pessoa como
se ela estivesse ali do seu lado...

Se você achar a pessoa maravilhosamente linda,
mesmo ela estando de pijamas velhos,
chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue trabalhar direito o dia todo,
ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...

Se você não consegue imaginar, de maneira
nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...

Se você tiver a certeza que vai ver a outra
envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção
que vai continuar sendo louco por ela...

Se você preferir fechar os olhos, antes de ver
a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes
na vida poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.

Às vezes encontram e, por não prestarem atenção
nesses sinais, deixam o amor passar,
sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
cego para a melhor coisa da vida: o AMOR !!!

Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 7 de maio de 2015

Para ser popular é indispensável ser medíocre.



                               Frida Kahlo

A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre.”

Oscar Wilde

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Provavelmente noutro tempo


Provavelmente noutro tempo, noutras circunstâncias
chegaríamos a iguais resultados
pelo que de nada adianta imaginar um almagesto
ou tabelas de paralaxe para isto
a que convencionalmente chamamos amor,
nem calcular o ângulo
entre nós e o centro da terra,
de nada nos aproveitara, tu e eu
centros escorraçados de irregular gravitação.
Porém, isso não me impediu de ver plêiades
cada vez que surgias (só
não te dizia nada) plêiades iluminando
meu Hades
com suas cabrinhas coruscantes
pascendo
o vale da sombra da morte.
E a questão hoje é: who’s gonna drive you home tonight?
quando o melancólico transístor
destila também outras perguntas, mas nenhuma
tão dura quanto essa,
por exemplo: porque é que a água tem mais tendência
a subir em tubos estreitos
ao contrário do mercúrio?
Isto é view-master e são coisas que faço
na tua ausência.

Daniel Jonas, in 'Os Fantasmas Inquilinos'

domingo, 26 de abril de 2015

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho


Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar o trabalho.
Quem não tem medo da fome tem medo da comida.
Os automobilistas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados.
A democracia tem medo de recordar e a linguagem tem medo de dizer.
Os civis têm medo dos militares e os militares têm medo da falta de armas.
As armas têm medo da falta de guerras.
Medo da mulher à violência do homem, medo do homem das mulheres sem medo.
Medo dos ladrões, medo da polícia.
Medo da porta sem fechadura, do tempo sem relógio, das crianças sem televisão.
Medo da noite sem comprimidos para dormir, medo de dia sem comprimidos para acordar.
Medo da multidão, medo da solidão.
Medo do que foi e do que pode ser.
Medo de morrer, medo de viver.

Eduardo Galeano

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Stairway To Heaven - Um épico




um dia destes tenho o dia inteiro para morrer



René Magritte


"um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero que me não doa,
um dias destes em todas as partes do corpo,
onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um dia inteiro para morrer completamente,
quando a fruta com seus muitos vagares amadura,
o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas linhas"


Herberto Helder, Servidões – Assírio & Alvim

a última bilha de gás durou dois meses e três dias


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra
[bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse
[nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a
 
[habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás, 
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

Herberto Hélder

A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014

sexta-feira, 10 de abril de 2015

nunca mais quero escrever numa língua voraz

nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo —
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-las numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio

in "Servidões"

Herberto Helder, 1930 - 2015

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...