quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Cinismo, Criatividade e Esperança

                            Michelangelo, (gravura), 1530
“O fatalismo colectivo é uma crença em massa de que uma mudança significativa é impossível. Os indivíduos outorgam as suas tomadas de decisões, na expectativa de que alguém vá fazê-las em seu nome, com ou sem o seu consentimento. Isso leva a uma infantilização dos cidadãos, que gozam a sua falta de poder e convertem-se em consumidores solitários, (…) para os quais as compras (o consumo) são seu derradeiro e significativo acto de afirmação, sinalizando um novo tédio que, na falta de alternativas, leva-nos ao fascismo.”
“O trabalho contemporâneo é frenético e, no meio dele, raramente se vê os amigos. A tela do computador é a janela pela qual um mundo sempre desperto e em alerta bombardeia os nossos neurónios com e-mails importantes, spams de Viagra, narcisismos, catástrofes contínuas e pornô do it yourself. Essa mudança ontológica no status do ser humano é uma das razões essenciais para o profundo sentimento do mal-estar e depressão que existe nos jovens adultos de hoje. Esse modo de viver não é suficiente, e quando alguém não é mais capaz, ou escolhe não se comportar como simples consumidor, ou interagir com o mundo por meio de logotipos de publicidade ou aplicativos, a raiva e a frustração crescem.”
“A vida está mais difícil, empobrecida, deprimente e monótona. Isto não é inevitável, e certamente não deveria ser aceitável — mesmo que muitos continuem a ceder ao aspecto sombrio da existência quotidiana, por falta de alternativas credíveis.”
“O poder não pode desaparecer, mas ele pode ser neutralizado quando se difunde entre uma massa igualitária de agentes democráticos o reconhecimento da regra do colectivo, não do individualismo. O capitalismo pode ser desfeito. Isso levar-nos-á a uma perturbação da vida social que temos e, inicialmente, a um período de conflitos sociais profundos, mas a história das sociedades humanas demonstra que as culturas não são, em essência, nem “boas” nem “más”, como afirmam muitos dos críticos morais e defensores do capitalismo. O certo é que as pessoas gostam mais de diálogos, da amizade e da generosidade do que do consumo e do trabalho.”
“O optimismo não pode significar a construção colectiva de mentiras convenientes, para tornar as pessoas infelizes mais capazes de enfrentar os seus infortúnios. Ao invés disso, ele articula a criatividade necessária para ir além dos meios hoje existentes e envolver-se num patamar de actividade novo e desconhecido. O optimismo é criativo… O pessimismo é reaccionário… Sua incapacidade de dar conta da natureza violenta do desejo, tanto cultural quanto biológico, o conduz a uma submissão cínica. O neoliberalismo é um sistema poderoso deste tipo.”


J. D. Taylor, Negative Capitalism: Cynicism in the Neoliberal Era

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O culto do Kitsch



                               Andy Warhol

"Porque o Kitsch mutila a Arte. O Kitsch é a cegueira. O Kitsch é a ideia falsificada da Perfeição. É a negação dos aspectos negativos das infraestruturas que servem de suporte a uma sociedade. É a negação da existência da merda”.


Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio acompanha a manhã.

Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas de céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava — uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou dum pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.

E desejo só cores. As cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. Cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor — e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez voltará à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca das cores.


(Cesare Pavese "Trabalhar Cansa", Cotovia, trad. de Carlos Leite)   

sábado, 3 de outubro de 2015

Mito


Virá o dia em que o jovem deus será um homem, 
sem sofrimento, com o morto sorriso do homem
 
que compreendeu. Também o sol se move longínquo
 
avermelhando as praias. Virá o dia em que o deus
 
já não saberá onde eram as praias de outrora.
 

Acorda-se uma manhã em que o Verão morreu,
 
e nos olhos tumultuam ainda esplendores
 
como ontem e no ouvido os fragores do sol
 
feito sangue. A cor do mundo mudou.
 
A montanha já não toca o céu; as nuvens
 
já não se amontoam como frutos; na água
 
já não transparece um seixo. O corpo dum homem
 
curva-se pensativo onde um deus respirava.
 

O grande sol acabou, e o cheiro da terra
 
e a rua livre, colorida de gente
 
que ignorava a morte. Não se morre de Verão.
 
Se alguém desaparecia, havia o jovem deus
 
que vivia por todos e ignorava a morte.
 
Nele a tristeza era uma sombra de nuvens.
 
O seu passo pasmava a terra.
 

                                        Agora pesa
 
o cansaço sobre todos os membros do homem,
 
sem sofrimento: o calmo cansaço da madrugada
 
que abre um dia de chuva. As praias sombreadas
 
não conhecem o jovem a quem outrora bastava
 
que as olhasse. Nem o mar do ar revive
 
na respiração. Cerram-se os lábios do homem
 
resignados, para sorrir frente à terra.
 

Cesare Pavese, 'Trabalhar Cansa'
 
com a tradução de Carlos Leite
 

Valentin Feldman


Em 1942, jovem filósofo francês Valentin Feldman, integrante da Resistência Francesa, diante de um pelotão de fuzilamento formado por soldados do Governo de Vichy, aliado dos nazistas, gritou para seus algozes, segundos antes de eles dispararem:
- Imbecis, é por vocês que vou morrer!

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

MIOPIA


não te sentes capaz de entender
o dia de hoje, baby?
espera que ele seja o dia de ontem.

nâo te sentes capaz de entender
o dia de ontem,  baby?
espera que ele seja o dia de amanhâ.

nâo te sentes capaz de entender
o dia de amanhâ, baby?
espera que ele seja o dia de hoje.

Alberto Pimenta

Louvor do Revolucionário

Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?

Onde quer que todos calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.

Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.

Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.


Bertold Brecht, Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas (Tradução de Paulo Quintela)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

JOSÉ


      E agora, José? 
              A festa acabou, 
              a luz apagou, 
              o povo sumiu, 
              a noite esfriou, 
              e agora, José? 
              e agora, você? 
              você que é sem nome, 
              que zomba dos outros, 
              você que faz versos, 
              que ama, protesta? 
              e agora, José?


              Está sem mulher, 
              está sem discurso, 
              está sem carinho, 
              já não pode beber, 
              já não pode fumar, 
              cuspir já não pode, 
              a noite esfriou, 
              o dia não veio, 
              o bonde não veio, 
              o riso não veio 
              não veio a utopia 
              e tudo acabou 
              e tudo fugiu 
              e tudo mofou, 
              e agora, José?


              E agora, José? 
              Sua doce palavra, 
              seu instante de febre, 
              sua gula e jejum, 
              sua biblioteca, 
              sua lavra de ouro, 
              seu terno de vidro, 
              sua incoerência, 
              seu ódio - e agora?


              Com a chave na mão 
              quer abrir a porta, 
              não existe porta; 
              quer morrer no mar, 
              mas o mar secou; 
              quer ir para Minas, 
              Minas não há mais. 
              José, e agora?


              Se você gritasse, 
              se você gemesse, 
              se você tocasse 
              a valsa vienense, 
              se você dormisse, 
              se você cansasse, 
              se você morresse... 
              Mas você não morre, 
              você é duro, José!


              Sozinho no escuro 
              qual bicho-do-mato, 
              sem teogonia, 
              sem parede nua 
              para se encostar, 
              sem cavalo preto 
              que fuja a galope, 
              você marcha, José! 
              José, para onde?

              Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Viver Sempre também Cansa



                       Alberto Pimenta, in “Rise of the Ten Tastes Mouth”

Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

 José Gomes Ferreira, Viver Sempre também Cansa

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Discurso do filho da puta


O pequeno filho da puta
é sempre
um pequeno filho da puta;
mas não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho da puta.
no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho da puta.
de resto,
os filhos da puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho da puta.
o pequeno
filho da puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho da puta.
no entanto,
o pequeno filho da puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho da puta.
todos os grandes
filhos da puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
dentro do
pequeno filho da puta
estão em ideia
todos os grandes filhos da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
o pequeno filho da puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho da puta.
é o pequeno filho da puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
de resto,
o pequeno filho da puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho da puta:
o pequeno filho da puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho da puta.

II

o grande filho da puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho da puta,
e não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.

no entanto,
há filhos da puta
que já nascem grandes
e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho da puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande filho da puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho da puta.
por isso
o grande filho da puta
tem orgulho em ser
o grande filho da puta.
todos
os pequenos filhos da puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
dentro do
grande filho da puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos da puta,
diz o
grande filho da puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos da puta,
diz
o grande filho da puta.
o grande filho da puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho da puta.
é o grande filho da puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho da puta,
diz o
grande filho da puta.
de resto,
o grande filho da puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho da puta:
o grande filho da puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,

o grande filho da puta.

Alberto Pimenta

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A História

Nikola Vaptzarov (1909-1942) Bulgária

Nasceu em 1909 em Bonsko (Bulgária). A sua profissão de mecânico permitiu-lhe o contacto com as miseráveis condições de trabalho nas fábricas.Filiou-se no Partido Comunista em 1934 e foi um activo resistente antifascista. Foi preso em Março de 1942. Em 23 de Julho de 1942 foi condenado à morte e abatido na mesma noite, juntamente com 11 outros homens, por um pelotão de fuzilamento alemão. Apesar de nunca ter publicado nenhum livro em vida, é considerado um dos mais importantes poetas búlgaros.
A 3 de Dezembro de 1953, recebeu postumamente o Prémio Internacional da Paz. Uma selecção da sua poesia foi publicada em livro, em 1954, em Londres e a sua poesia já foi traduzida para 98 línguas.



A nós que oferecerás, História,
nas tuas páginas amarelecidas?
Éramos todos gente anónima,
homens de fábricas e escritórios.

Éramos camponeses! Cheirávamos
ao fedor da cebola, do suor.
Sob os nossos bigodes caídos
praguejávamos contra a vida.

Será ao menos reconhecido
que te saciámos de factos
embebidos com abundância
no sangue de milhares de mortos?

Traçarás certamente os contornos
e a substância será excluída.
Ninguém irá decerto descrever
o nosso pobre drama humano.

Os poetas estarão ocupados
a compor rimas de propaganda,
mas a nossa angústia não escrita
vagueará, solitária, no espaço.

Terá sido uma vida a relatar
a nossa? Uma vida a evocar?
Ao pesquisá-la solta-se bolor;
liberta-se venenosa exalação.

Nascíamos algures, pelos campos,
em abrigos de acaso nos silvados;
as nossas mães torciam-se com dores
mordendo os lábios ressequidos.

No Outono morríamos como moscas,
as mulheres, no Dia dos Mortos,
gritavam, mudavam o seu lamento
em cântico só escutado pelos tojos.

Os que entre nós sobreviveram
dobraram a espinha sob o jugo.
Como pobres animais de carga
trabalhámos não importa em quê.

Em casa, os velhos afirmavam:
"Assim foi, assim é e será!"
Furiosos, nós cuspíamos
sobre tão estúpida certeza.

Raivosos, saíamos da mesa,
saíamos correndo, fora, onde
uma esperança nos aflorava
como um hálito luminoso.

Esperávamos, cheios de angústia
no ar sufocante das tavernas!
Íamos para a cama alta noite
depois dos últimos noticiários.

Como as esperanças iludiam!
Pesava-nos um céu de chumbo
e um vento de fogo assobiava:
"Basta, não quero, não aguento!"

Nos teus volumes espessos,
entre as linhas, sob as linhas,
o nosso sofrimento uivará
e manterá o rosto hostil.

Sobre nós, implacavelmente,
a vida abateu pesado punho,
violento, na boca esfomeada...
Por isso a língua é-nos áspera.

Os versos que escrevíamos então
pela noite, em troca de sono,
da rosa não liberam o perfume,
descarnados, secos, agressivos.

Não esperamos prémio dos tormentos.
Até aos pesados in-fólios
que os séculos vão acumulando
as nossas dores nunca chegarão.

Mas ao menos, com palavras simples
revela às multidões do amanhã
destinadas a substituir-nos
que lutámos valorosamente.


               (tradução de  Egipto Gonçalves)


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Mariana Pineda




O famoso poeta espanhol Federico García Lorca recita o seu último poema, mesmo antes da sua execução, durante a guerra civil de Espanha em Agosto de 1936, por um pelotão de fuzilamento fascista.

“Mariana,
Que é o homem sem liberdade?
Sem essa luz harmoniosa e fixa que se sente por dentro?
Como poderia te querer não sendo livre, diz-me?
Como te dar este firme coração se não é meu? Não temas;
Como te dar este firme coração, se não é meu?”


Mariana Pineda foi escrita em 1925. Ela e Federico viveram em épocas onde se produziam grandes mudanças. Ambos amaram Granada e nela viveram, onde acabaram por morrer, inocentes e executados pela ditadura de franco.

Ainda não


Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
.
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
.
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração


António José Forte

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja


                              white crow by marurenai

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja,
que o absurdo, mesmo em curtas doses,
defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!
Se é verdade o aforismo faca afia faca
(não sabemos falar senão figuradamente
sinal de que somos pouco capazes de abstracção).
Se faca afia faca,
então que a faca do absurdo
venha afiar a faca da nossa embotada vontade,
venha instalar-se sobre a lâmina do inesperado
e o dia a dia será nosso e diferente.
Aflições? Teremos muitas não haja dúvida.
Mas tudo será melhor que este dia a dia.
Os povos felizes não têm história, diz outro aforismo.
Mas nós não queremos ser um povo feliz.
Para isso bastam os suíços, os suecos, que sei eu?
Bom proveito lhes faça!
Nós queremos a maleita do suíno,
a noiva que vê fugir o noivo,
a mulher que vê fugir o marido,
o órfão que é entregue à caridade pública,
o doente de hospital ainda mais miserável que o hospital
onde está a tremer, a um canto, e ainda ninguém lhe ligou
nenhuma. Nós queremos ser o aleijado nas ruas, a pedir esmola, a
a bardalhar-se frente aos nossos olhos. Queremos ser o pai
desempregado que não sabe que Natal Dai-nos, meu Deus…
há-de dar aos seus.
Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.
Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.


Alexandre O’Neill

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...