Hugues de Wurstemberger
Sob o sol em meu leito após a água -
Sob o sol e sob o reflexo enorme do sol sobre o mar,
Sob a janela,
Sob os reflexos e os reflexos dos reflexos
Do sol e dos sóis sobre o mar
Nos vidros,
Após o banho, o café, as ideias,
Nu sob o sol em meu leito todo iluminado
Nu - só - louco -
Eu!
Paul Valéry
quarta-feira, 6 de abril de 2016
quarta-feira, 16 de março de 2016
À une raison
Allen Birnbach
Un coup de
ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la
nouvelle harmonie.
Un pas de toi c’est la levée de nouveaux hommes et leur
en-marche.
Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne, –
le nouvel amour!
Arthur
Rimbaud, Illuminations e Une saison en enfer.
«Um toque do teu dedo no tambor dispara todos os sons e
começa a
nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, – o novo
amor!»
terça-feira, 1 de março de 2016
Princípio do dia
Robert & Shana ParkeHarrison
Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.
Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.
No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.
E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.
(Amanhã volto a experimentar).
Rui Knopfli
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
Cântico negro
Robert & Shana ParkeHarrison
Rui Knopfli
Cago na juventude e na
contestação
e também me cago em Jean-Luc
Godard.
Minha alma é um gabinete
secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas
paredes
nem uma só gravura de
Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e
descoloridos
não encontrareis decerto os
nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit.
Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas
graves
e solenes, recrutados entre
chineses
do período T’ang,
isabelinos,
arcaicos, renascentistas,
protonotários
- esses abundam. De pop
apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu
teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas
rigorosamente
só, anomalia desértica em plena
leiva.
Não entro na forma, não
acerto o passo,
não submeto a dureza agreste
do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro
as minorias.
De alguns. De poucos. De um
só se necessário
for. Tenho a esperança
porém; um dia
compreendereis o significado
profundo da minha
originalidade: I am really the UndergroundRui Knopfli
you are welcome to elsinore
Robert & Shana ParkeHarrison
Entre nós e as palavras há
metal fundente
entre nós e as palavras há
hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos
tirar
do mais fundo de nós o mais
útil segredo
entre nós e as palavras há
perfis ardentes
espaços cheios de gente de
costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e
crianças sentadas
à espera do seu tempo e do
seu precipício
Ao longo da muralha que
habitamos
há palavras de vida há
palavras de morte
há palavras imensas, que
esperam por nós
e outras, frágeis, que
deixaram de esperar
há palavras acesas como
barcos
e há palavras homens,
palavras que guardam
o seu segredo e a sua
posição
Entre nós e as palavras,
surdamente,
as mãos e as paredes de
Elsenor
E há palavras nocturnas palavras
gemidos
palavras que nos sobem
ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras
nunca escritas
palavras impossíveis de
escrever
por não termos connosco
cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo
nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes
escrevem muito alto
muito além do azul onde
oxidados morrem
palavras maternais só sombra
só soluço
só espasmo só amor só
solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os
emparedados
e entre nós e as palavras, o
nosso dever falar
Mário Cesariny
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Amor - pois que é palavra essencial
Amor – pois que é palavra
essencial
comece
esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
Carlos
Drummond de AndradeAmor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
Exercícios de Estilo - Namorados
Domingo de manhã fui com a
Amada para a praia nos rochedos junto do mar vi pela primeira vez o seu corpo
nu feito espuma e onda. Ficámos calados (como quem está só) escondidos de todos
à beira-água (como quem ama, apetecendo-a como os suicidas), o seu corpo
cheirava a maresia (cheiraria?). Numa doidice de beijos e carícias leves beijei
seus pés de espuma macia… em lírica, diria: pés de sereia; em realística,
diria: pés de virgem (feia); em novelística, da antiga, diria: pés de deusa
brinca-brincando na areia; em novelística, novíssima: patitas catitas de
centopeia…, beijei seus pés; por ali mesmo a comecei a beijar. Caprichos de
libertino: o corpo da Amada ficou lá nos rochedos à beira-água onda infatigável
desfeito liquefeito brisa de maresia pairando no bafo quente do ar e eu guardo
no meu quarto na minha colecção mais um sexo de donzela conservado em álcool e
memória, numa mistura fácil de três por dois, tintos.
[…]
Luiz Pacheco
quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
De Si(lên)cio dos Poetas
PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA
A
crueldade reside ainda, e talvez sobretudo, no recusar-se a servir de objecto
de prazer, de conciliação com a realidade. Ê assim que este tipo de arte
esteticamente emancipada (acima de tudo esta chamada “poesia moderna) não funciona
como representação <clara e pouco usual> da realidade, nem como hipóstase
de um mundo imaginado ou como ersatz para
frustração existencial, nem como mito: funciona como recusa de colaborar com a
totalidade na sua lenta mas constante destruição do indivíduo e da sua livre e autónoma
consciência.
Alberto
Pimenta
porco trágico I
PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA
conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.
o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.
Alberto Pimenta
quarta-feira, 20 de janeiro de 2016
Enquanto o papa não chega
PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA
Enquanto o papa não chega
Todos dão a sua achega*
POR EXEMPLO:
As autoridades convencem com os dentes.
Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura
Os investidores apostam na sementeira
de guarda-republicanos.
Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.
Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular.
Os tecnocratas correm o fecho-éclair
para fazer luz sobre o assunto.
Os psiquiatras metem o dedo no olho do
cliente para lhe aprofundar os desvios.
Os mestres ensinam os cães particulares
a defecar nos passeios públicos.
Os escritores erguem a voz acima de todas para
dizer que todas as vozes se devem fazer ouvir.
Os funcionários públicos zelam por que tudo
o que não é proibido seja obrigatório.
Os sacerdotes encaminham a alma
para o sétimo céu.
Os internados no manicómio recebem
coleiras novas com o número fiscal.
Os jornalistas dão peidos que abalam a
qualidade de vida da cidade.
O povo digere tudo porque tem
dentes até ao cu.
Os polícias de choque referem-se
às conquistas de abril.
Os anjos da guarda interceptam os
pacotes com as bombas e explodem.
A visita do papa, Alberto
Pimenta
quinta-feira, 14 de janeiro de 2016
Do amor
Flor Garduño
“A única
função do amor é a de ajudar-nos a suportar essas tardes dominicais, cruéis e
incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana e para toda a
eternidade.”
Emil Cioran
É o louco que existe em nós quem nos obriga à aventura
PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA
“É o
louco que existe em nós quem nos obriga à aventura. Se nos abandona, estamos
perdidos: tudo depende dele, inclusive nossa vida vegetativa; é ele quem nos
convida a respirar, quem nos obriga a tal, e é também ele quem empurra o sangue
por nossas veias. Se ele se retirasse, ficaríamos sós! Não se pode ser normal e
vivo ao mesmo tempo.”
Emil Cioran
segunda-feira, 4 de janeiro de 2016
EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA
PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA, ano de 1968/64
Em
silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.
Era
a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.
Descobri
que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.
Cidade
que aperto, batendo as asas - ela -
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.
Herberto Helder
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
ANTOLOGIA DRUMMONDIANA
A vida – sabemos – vai mal
A morte – coitada – nada tem a oferecer-nos de novo
Por isso
faz um
poema josé
faz um
poema suzana
faz um
poema tomé
faz um
poema ana
faz um
José Vicente Lopes
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
Poema do Mar
O drama do Mar,
O desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!
O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...
O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!
O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...
O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...
O Mar! dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!
Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!
Jorge Barbosa
O desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!
O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...
O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!
O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...
O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...
O Mar! dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!
Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!
terça-feira, 24 de novembro de 2015
RUBRICA OLHARES
Nós
dizemos revolução - Por Beatriz Preciado
Parece que os gurus da velha Europa
se obstinam ultimamente a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy,
Indignados, handi-trans-gays-lésbicas-intersex e postporn que não poderemos
fazer a revolução porque não temos uma ideologia. Eles dizem “uma ideologia”
como minha mãe dizia “um marido”. Pois bem, não precisamos nem de ideologia nem
de marido. As novas feministas, não precisamos de marido porque não somos
mulheres. Assim como não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem
comunismo nem liberalismo. Nem o refrão católico-muçulmuno-judeu. Falamos uma
outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles
dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós
dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e
interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança
multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos
montemos nos cavalos para fugir juntos do batedouro global. Eles dizem poder.
Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles
dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual,
Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade
já não funciona mais… Quanto de Galileu precisaremos desta vez para re-aprender
a nomear as coisas, nós mesmos? Eles nos fazem a guerra econômica a golpe de
facão digital neo-liberal. Mas nós não choraremos a morte do
Estado-providência, porque o Estado-providência era também o hospital
psiquiátrico, o centro de inserção das pessoas com deficiência, a prisão, a
escola patriarcal-colonial-heterocentrada. Está na hora de pôr Foucault na
dieta handi-queer e de escrever a morte da Clínica. Está na hora de convidar
Marx para um ateliê eco-sexual. Não vamos adotar o estado disciplinar contra o
mercado neoliberal. Esses dois já travaram um acordo: na nova Europa, o mercado
é a única razão governamental, o Estado se tornou o braço punitivo cuja única
função será aquela de re-criar a ficção da identidade nacional por meio do medo
securitário. Nós não desejamos nos definir como trabalhadores cognitivos nem
como consumidores farmacopornográficos. Nós não somos Facebook, nem Shell, nem
Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não desejamos produzir francês, e tampouco europeu.
Não desejamos produzir. Nós somos a rede viva descentralizada. Nós recusamos uma
cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução.
Nós queremos uma cidadania total definida pelo compartilhamento das técnicas,
dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a guerra limpa
se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é
a paz, o afeto total. Eles dizem crise, nós dizemos revolução.
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
Tratado geral das grandezas do ínfimo
John Gutmann
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
O apanhador de desperdícios
"Renée Jacobi" (1930)
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Manoel de Barros
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
Uma didática da invenção
I
Para apalpar as
intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O
pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até
ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas
do Ínfimo estava
escrito:
escrito:
Poesia é quando a tarde
está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras
entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm
nome são mais pronunciadas
por crianças.
por crianças.
VII
No descomeço era o
verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou
de Deus: foi em
Van Gogh.
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de
árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das
pedras.Manoel de Barros
terça-feira, 10 de novembro de 2015
CARTA
toshiko-okanoue
1. se v.exa. me permite
eu gostaria de dizer o que penso.
2. em primeiro lugar penso
que v.exa. anda
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.
3. v.exa. dirá que eu estou afirmando
que v.exa. anda para trás.
4. na verdade, nada me impede de afirmar que
v.exa. anda para trás.
não foi isso porém o que eu disse.
5. com efeito, não sei
se v.exa. anda para trás. segundo penso,
v.exa. anda no sentido oposto ao dos ponteiros
do relógio.
6. seria necessário poder afirmar com toda a
segurança que os ponteiros do relógio
andam para a frente,
para poder afirmar
com igual segurança
que v.exa. anda para trás.
7. mas quem está em condições de
afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente? ninguém está
em condições de afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente, porque, como v.exa. sabe,
os ponteiros do relógio andam à roda.
8. a única coisa que se pode afirmar com toda a
segurança
é que os ponteiros do relógio andam
à roda para um lado e v.exa.
anda à roda para o outro. os ponteiros
do relógio rodam para um lado e v.exa. roda
para o outro. de modo que v.exa. com
o seu movimento anula o movimento
dos ponteiros do relógio e vice-versa.
9. na verdade é como
se v.exa. não andasse e como
se os ponteiros do relógio também não andassem.
Alberto Pimenta
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Toda influência é imoral
August Sander
“- Não existe boa influência –
respondeu Lord Henry. – Toda influência é imoral – imoral do ponto de vista
científico -, porque influenciar uma pessoa é dar-lhe sua própria alma. Ela já
não pensa com seus próprios pensamentos nem sente suas próprias paixões. Suas
virtudes não são reais para ela. Seus pecados, se existem tais coisas, são
emprestados. Torna-se um eco da música de outra pessoa. O objetivo da vida é o
autodesenvolvimento. Cumprir a própria natureza perfeitamente – essa é a razão
por que estamos aqui. As pessoas têm medo de si mesmas, hoje em dia.
Esqueceram-se de seu principal dever. Claro que são caridosas: alimentam os
famintos, vestem os mendigos. Mas suas próprias almas morrem de fome e estão
nuas. O terror da sociedade, que é a base da moral, e o terror de Deus, que é o
segredo da religião, são as duas coisas que nos governam. Mas eu acredito que
se um homem vivesse sua vida completamente, desse forma a todo sentimento,
expressão a todo pensamento, a realidade a cada sonho, acredito que o mundo
ganharia um impulso novo de alegria. Mas o mais corajoso dos homens tem medo de
si mesmo. Cada impulso que lutamos para estrangular aninha-se na mente e nos
envenena. O corpo peca uma vez e não tem nada mais a ver com o pecado, pois a
ação é um modo de purificação. Nada permanece, a não ser a lembrança de um
prazer ou desgosto. A única maneira de se livrar de uma tentação é entregar-se
a ela…”
Oscar Wilde, O Retrato
de Dorian Gray
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