quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Ah, quero as relvas e as crianças!



                      Joan Miró

Ah, quero as relvas e as crianças!
Quero o coreto com a banda!
Quero os brinquedos e as danças —
A corda com que a alma anda.
Quero ver todas brincar
Num jardim onde se passa,
Para ver se posso achar
Onde está minha desgraça.
Ah, mas minha desgraça está
Em eu poder querer isto —
Poder desejar o que há.
[...]
  
Fernando Pessoa

Amei-te e por te amar

Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...


Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.


Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.


Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...


Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?


Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.


Em que és [...] fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...


[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...


Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma!


E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…


Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?


Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...


Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...


Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.


Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?


Talvez sintas como eu
E não saibas senti-lo...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobri-lo,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...


Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...



                              Rudolf Nureyev

Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...


E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.


Fernando Pessoa



O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...