quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A Rua é das Crianças

Ninguém sabe andar na rua como as crianças. Para elas é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor umbrais. Sair à rua é para elas muito mais do que sair à rua. Vão com o vento. Não vão a nenhum sítio determinado, não se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstáculo que se opõe ao guarda-chuva. Abrem-se à aragem. Não projetam sobre as pedras, sobre as árvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm. Vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito mais longe. E nem sequer sabem que são a alegria de quem as vê passar e desaparecer. Ruy Belo

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Les Chants de Maldoror

John Bauer

Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito...Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta...acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau.

Lautréamont, in Os Cantos de Maldoror

domingo, 7 de março de 2021

quatro e meia da manhã



quatro e meia da manhã,

e eu escuto

meus amigos:

os lixeiros

e os ladrões

e gatos sonhando com

minhocas,

e minhocas sonhando

os ossos

do meu amor,

e eu não posso dormir

e logo vai amanhecer,

os trabalhadores vão se levantar

e eles vão procurar por mim

no estaleiro e dirão:

“ele tá bêbado de novo”,

mas eu estarei adormecido,

finalmente, no meio das garrafas e

da luz do sol,

toda a escuridão acabada,

os braços abertos como

uma cruz.


Charles Bukowski

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

3101 in "Livro de Eros" de Casimiro de Brito

Filme: The Pillow Book
"Deliciei-me quando transbordaste!
Deixaste de ser tu e passaste a ser um orgasmo líquido, lento e louco.
“Como? Diz o que sentiste.”
As águas perfumadas da tua cascata abandonaram o ninho e inundaram-me as coxas, que tu depois lambeste.
Bebendo-me, bebeste-te.
E deixaste em mim o teu perfume.

Por isso não me lavei o dia inteiro pois foste o meu vinho e andei embriagado até cair de novo nos teus braços, nas tuas pernas, no teu ninho que nunca mais acaba." 

693 in "Livro de Eros" de Casimiro de Brito


Filme: The Pillow Book
Tão breve a noite quando nos amamos. 
Quando nos lemos um ao outro. Ou quando, 
um no outro, escrevemos.

terça-feira, 14 de abril de 2020

sábado, 21 de março de 2020

Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada




                                     Flor-Garduno

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados
das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caeiro

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...