segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O tédio é a perda da capacidade de se iludir.

 


(...)

O tédio... É talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir...


O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.”


Bernardo Soares


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Ulisses - James Joyce

Escuridade está em nossa almas, não achas? Mais maviosa. Nossas almas, vergonhiferidas por nossos pecados, apegam-se a nós ainda mais, uma mulher apegando-se ao seu amante, e mais e mais. § Ela confia em mim, sua mão meiga, os longuiciliados olhos. (Ulisses, trad. de António Houaiss, pp. 40-1.)

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A Rua é das Crianças

Ninguém sabe andar na rua como as crianças. Para elas é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor umbrais. Sair à rua é para elas muito mais do que sair à rua. Vão com o vento. Não vão a nenhum sítio determinado, não se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstáculo que se opõe ao guarda-chuva. Abrem-se à aragem. Não projetam sobre as pedras, sobre as árvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm. Vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito mais longe. E nem sequer sabem que são a alegria de quem as vê passar e desaparecer. Ruy Belo

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Les Chants de Maldoror

John Bauer

Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito...Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta...acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau.

Lautréamont, in Os Cantos de Maldoror

domingo, 7 de março de 2021

quatro e meia da manhã



quatro e meia da manhã,

e eu escuto

meus amigos:

os lixeiros

e os ladrões

e gatos sonhando com

minhocas,

e minhocas sonhando

os ossos

do meu amor,

e eu não posso dormir

e logo vai amanhecer,

os trabalhadores vão se levantar

e eles vão procurar por mim

no estaleiro e dirão:

“ele tá bêbado de novo”,

mas eu estarei adormecido,

finalmente, no meio das garrafas e

da luz do sol,

toda a escuridão acabada,

os braços abertos como

uma cruz.


Charles Bukowski

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

3101 in "Livro de Eros" de Casimiro de Brito

Filme: The Pillow Book
"Deliciei-me quando transbordaste!
Deixaste de ser tu e passaste a ser um orgasmo líquido, lento e louco.
“Como? Diz o que sentiste.”
As águas perfumadas da tua cascata abandonaram o ninho e inundaram-me as coxas, que tu depois lambeste.
Bebendo-me, bebeste-te.
E deixaste em mim o teu perfume.

Por isso não me lavei o dia inteiro pois foste o meu vinho e andei embriagado até cair de novo nos teus braços, nas tuas pernas, no teu ninho que nunca mais acaba." 

693 in "Livro de Eros" de Casimiro de Brito


Filme: The Pillow Book
Tão breve a noite quando nos amamos. 
Quando nos lemos um ao outro. Ou quando, 
um no outro, escrevemos.

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...