sábado, 14 de dezembro de 2013

A mão invisível do vento roça por cima das ervas. [ À la manière de A. Caeiro ]


A mão invisível do vento roça por cima das ervas.
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,
E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.
Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.
Também por mim um desejo inutilmente bafeja
As hastes das intenções, as flores do que imagino,
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.

Ricardo Reis

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais


 toshiko-okanoue

A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais

A alegria humana, vivaz, sobre o caso da vizinha
Da mãe inconsolável a que o filho morreu há um ano

Trapos somos, trapos amamos, trapos agimos — Que trapo tudo que é este mundo!

Álvaro de Campos

sábado, 7 de dezembro de 2013

De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real.

"De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de (as) sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente [...] é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena [...] e triunfante acção, nunca desaparecem o (...) do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer. Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso."

Bernardo Soares

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Cultura e Civilização

Uma mesa cheia de feijões. O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão. O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo. Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas. O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território é o processo da CIVILIZAÇÃO. O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA. É mais difícil a passagem da civilização para a cultura do que a formação de civilização. A civilização é um fenómeno colectivo. A cultura é um fenómeno individual. Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.
Almada Negreiros

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vai alta no céu a lua da Primavera

Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

Alberto Caeiro

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Concentra-te, e serás sereno e forte;

Concentra-te, e serás sereno e forte;
Mas concentra-te fora de ti mesmo.
Não sê mais para ti que o pedestal
No qual ergas a estátua do teu ser.
Tudo mais empobrece, porque é pobre.

Ricardo Reis




domingo, 10 de novembro de 2013

XXVIII - Li hoje quase duas páginas

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

Alberto Caeiro

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...