quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Enquanto o papa não chega

                            PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA


Enquanto o papa não chega
Todos  dão a sua achega*

POR  EXEMPLO:
As autoridades convencem com os dentes.
Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura
Os investidores apostam na sementeira
de guarda-republicanos.
Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.
Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular. 
Os tecnocratas correm o fecho-éclair
para fazer luz sobre o assunto. 
Os psiquiatras metem o dedo no olho do
cliente para lhe aprofundar os desvios. 
Os mestres ensinam os cães particulares
a defecar nos passeios públicos. 
Os escritores erguem a voz acima de todas para
dizer que todas as vozes se devem fazer ouvir.
Os funcionários públicos zelam por que tudo
o que não é proibido seja obrigatório.
Os sacerdotes encaminham a alma
para o sétimo céu.
Os internados no manicómio recebem
coleiras novas com o número fiscal.
Os jornalistas dão peidos que abalam a
qualidade de vida da cidade.
O povo digere tudo porque tem
dentes até ao cu.
Os polícias de choque referem-se
às conquistas de abril.
Os anjos da guarda interceptam os
pacotes com as bombas e explodem.

A visita do papa, Alberto Pimenta


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Do amor

                            Flor Garduño
“A única função do amor é a de ajudar-nos a suportar essas tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana e para toda a eternidade.”

Emil Cioran

É o louco que existe em nós quem nos obriga à aventura

                                 PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA
“É o louco que existe em nós quem nos obriga à aventura. Se nos abandona, estamos perdidos: tudo depende dele, inclusive nossa vida vegetativa; é ele quem nos convida a respirar, quem nos obriga a tal, e é também ele quem empurra o sangue por nossas veias. Se ele se retirasse, ficaríamos sós! Não se pode ser normal e vivo ao mesmo tempo.”
Emil Cioran

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA


                             PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA, ano de 1968/64  

Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.
Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.
Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.

Cidade que aperto, batendo as asas - ela -
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.

Herberto Helder

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

ANTOLOGIA DRUMMONDIANA

A vida – sabemos – vai mal
A morte – coitada – nada tem a oferecer-nos de novo
Por isso
         faz um poema josé
         faz um poema suzana
         faz um poema tomé
         faz um poema ana
         faz um

José Vicente Lopes

Marguerite Duras


"Caminhais em direcção da solidão. Eu, não, eu tenho os livros."

Marguerite Duras

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Poema do Mar

                                                René Magritte
O drama do Mar,
O desassossego do Mar,
           sempre
           sempre
           dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...

O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...

O Mar! dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

           Este convite de toda a hora
           que o Mar nos faz para a evasão!
           Este desespero de querer partir
           e ter que ficar!


Jorge Barbosa

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...