sábado, 12 de outubro de 2019

Dor Elegante


                       John Gutmann

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Paulo Leminski

domingo, 22 de julho de 2018

Poema em linha recta



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos


terça-feira, 5 de julho de 2016

Paisagem

                            Flor Garduño

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A Little Closer to the Edge


                             Flor Garduño

Young enough to believe nothing
will change them, they step, hand-in-hand,

into the bomb crater. The night full
of  black teeth. His faux Rolex, weeks

from shattering against her cheek, now dims
like a miniature moon behind her hair.

In this version the snake is headless — stilled
like a cord unraveled from the lovers’ ankles.

He lifts her white cotton skirt, revealing
another hour. His hand. His hands. The syllables

inside them. O father, O foreshadow, press
into her — as the field shreds itself

with cricket cries. Show me how ruin makes a home
out of  hip bones. O mother,

O minutehand, teach me
how to hold a man the way thirst

holds water. Let every river envy
our mouths. Let every kiss hit the body

like a season. Where apples thunder
the earth with red hooves. & I am your son.


Ocean Vuong

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Vulgaridade

                                         Flor Garduno

Em todo o homem, nada é mais existente e verídico que sua própria vulgaridade, fonte de tudo o que é elementarmente vivo. Mas, por outro lado, quanto mais estabelecido se está na vida, mais desprezível se é. Quem não espalha à sua volta uma vaga irradiação fúnebre, e não deixa ao passar um rastro de melancolia vindo de mundos longínquos, esse pertence à subzoologia e, mais especificamente, à história humana.

E. M. Cioran, Breviário de decomposição

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...