terça-feira, 27 de junho de 2023

Le Bateau Ivre


Rimbaud escreveu o incrível Le Bateau Ivre em 1871, em Charleville, aos 17 anos. Logo valeu-se dele para, em carta destinada a Paul Verlaine, usá-lo como cartão de visitas de sua obra. Os 25 quartetos compostos em versos alexandrinos com rimas alternadas constituem um dos pontos altos de sua produção poética. Deixemos o poema falar por si mesmo.



Le Bateau Ivre

Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J'étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

Dans les clapotements furieux des marées
Moi l'autre hiver plus sourd que les cerveaux d'enfants,
Je courus ! Et les Péninsules démarrées
N'ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.

La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots
Qu'on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l'oeil niais des falots!

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sures,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres, et lactescent,
Dévorant les azurs verts ; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend;

Où, teignant tout à coup les bleuités, délires!
Et rythmes lents sous les rutilements du jour,
Plus fortes que l'alcool, plus vastes que nos lyres,
Fermentent les rousseurs amères de l'amour!

Je sais les cieux crevant en éclairs, et les trombes
Et les ressacs et les courants : Je sais le soir,
L'aube exaltée ainsi qu'un peuple de colombes,
Et j'ai vu quelque fois ce que l'homme a cru voir!

J'ai vu le soleil bas, taché d'horreurs mystiques,
Illuminant de longs figements violets,
Pareils à des acteurs de drames très-antiques
Les flots roulant au loin leurs frissons de volets!

J'ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
Baiser montant aux yeux des mers avec lenteurs,
La circulation des sèves inouïes,
Et l'éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs!

J'ai suivi, des mois pleins, pareille aux vacheries
Hystériques, la houle à l'assaut des récifs,
Sans songer que les pieds lumineux des Maries
Pussent forcer le mufle aux Océans poussifs!

J'ai heurté, savez-vous, d'incroyables Florides
Mêlant aux fleurs des yeux de panthères à peaux
D'hommes ! Des arcs-en-ciel tendus comme des brides
Sous l'horizon des mers, à de glauques troupeaux!

J'ai vu fermenter les marais énormes, nasses
Où pourrit dans les joncs tout un Léviathan!
Des écroulement d'eau au milieu des bonaces,
Et les lointains vers les gouffres cataractant!

Glaciers, soleils d'argent, flots nacreux, cieux de braises!
Échouages hideux au fond des golfes bruns
Où les serpents géants dévorés de punaises
Choient, des arbres tordus, avec de noirs parfums!

J'aurais voulu montrer aux enfants ces dorades
Du flot bleu, ces poissons d'or, ces poissons chantants.
- Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades
Et d'ineffables vents m'ont ailé par instants.

Parfois, martyr lassé des pôles et des zones,
La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d'ombres aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu'une femme à genoux...

Presque île, balottant sur mes bords les querelles
Et les fientes d'oiseaux clabaudeurs aux yeux blonds
Et je voguais, lorsqu'à travers mes liens frêles
Des noyés descendaient dormir, à reculons!

Or moi, bateau perdu sous les cheveux des anses,
Jeté par l'ouragan dans l'éther sans oiseau,
Moi dont les Monitors et les voiliers des Hanses
N'auraient pas repêché la carcasse ivre d'eau;

Libre, fumant, monté de brumes violettes,
Moi qui trouais le ciel rougeoyant comme un mur
Qui porte, confiture exquise aux bons poètes,
Des lichens de soleil et des morves d'azur,

Qui courais, taché de lunules électriques,
Planche folle, escorté des hippocampes noirs,
Quand les juillets faisaient crouler à coups de triques
Les cieux ultramarins aux ardents entonnoirs;

Moi qui tremblais, sentant geindre à cinquante lieues
Le rut des Béhémots et les Maelstroms épais,
Fileur éternel des immobilités bleues,
Je regrette l'Europe aux anciens parapets!

J'ai vu des archipels sidéraux ! et des îles
Dont les cieux délirants sont ouverts au vogueur:
- Est-ce en ces nuits sans fond que tu dors et t'exiles,
Million d'oiseaux d'or, ô future Vigueur? -

Mais, vrai, j'ai trop pleuré ! Les Aubes sont navrantes.
Toute lune est atroce et tout soleil amer:
L'âcre amour m'a gonflé de torpeurs enivrantes.
Ô que ma quille éclate ! Ô que j'aille à la mer!

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache
Noire et froide où vers le crépuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesses, lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.


Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.


Arthur Rimbaud

O Barco Bêbado

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
viam turbilhonar marés de verde e anil.


O vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.


Então eu mergulhei nas águas do Poema
do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes – dilema
Lívido – um afogado afunda lentamente;

Onde, tingindo azulidades com quebrantos
E ritmos lentos sob o rutilante albor,
Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,
fermentam de amargura as rubéolas do amor!

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,
Ressacas e marés: conheço o entardecer,
A Aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Iluminando os longos glaciais;
Como atrizes senis em palcos cabalísticos,
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

Por meses eu segui, tropel de vacarias
Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias!

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas
Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.


Vi fermentarem pântanos imensos, ansas
Onde apodrecem Leviatãs distantes!
O desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!
Náufragos abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

Ah! se as crianças vissem o dourar das ondas,
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
– As espumas em flor ninaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

Mártir de pólos e de zonas misteriosas,
O mar a soluçar cobria os meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
e eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

Quase ilha a balouçar entre borras e brados
De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.

Mas eu, barco perdido em baías e danças,
Lançado no ar sem pássaros pela torrente,
De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de água ardente;

Livre, fumando em meio às virações inquietas,
Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Líquens de sol vômitos de azul escuro;

Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas
O céu ultramarino e seus funis de bruma; 

Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,
O cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris,
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!


Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas
Que o delírio dos céus desvela ao viajor:
– É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!
Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
trêmulo como a asa de uma borboleta.

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

Tradução de Augusto de Campos

não discuto


Flor Garduño

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino


Paulo Leminski


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Amei Demais

toshiko-okanoue

 

Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais

todas as coisas que na vida eu emprenhei.

Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais,

como as tais coisas nas quais nunca pensei.


Demais foram as sombras. Mais e mais.

Cada vez mais ardentes as sombras que tirei

do imenso mar de sol, sem praia ou cais,

de onde parti sem saber por que embarquei.


Amei demais. Sempre demais. E o que dei

está espalhado pelos sítios onde vais

e pelos anos longos, longos, que passei


à procura de ti. De mim. De ninguém mais.

E os milhares de versos que rasguei

antes de ti, eram perfeitos. Mas banais.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Canção da Minha Tristeza

Rob Gonsalves Painting Sea Books Birds


Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu
virás despentear os meus cabelos.


Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia
vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.
Ah, meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.


A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.
Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.
Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.


Nada acontece. Nada. E eu procuro-te
por dentro da noite, com mãos de surpresa.
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.


E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,
que não vens despentear os meus cabelos?
Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.


Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.


Joaquim Pessoa 

Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo

Flor Garduño


Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo

nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre.

Joaquim Pessoa

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O tédio é a perda da capacidade de se iludir.

 


(...)

O tédio... É talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir...


O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.”


Bernardo Soares


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Ulisses - James Joyce

Escuridade está em nossa almas, não achas? Mais maviosa. Nossas almas, vergonhiferidas por nossos pecados, apegam-se a nós ainda mais, uma mulher apegando-se ao seu amante, e mais e mais. § Ela confia em mim, sua mão meiga, os longuiciliados olhos. (Ulisses, trad. de António Houaiss, pp. 40-1.)

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A Rua é das Crianças

Ninguém sabe andar na rua como as crianças. Para elas é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor umbrais. Sair à rua é para elas muito mais do que sair à rua. Vão com o vento. Não vão a nenhum sítio determinado, não se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstáculo que se opõe ao guarda-chuva. Abrem-se à aragem. Não projetam sobre as pedras, sobre as árvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm. Vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito mais longe. E nem sequer sabem que são a alegria de quem as vê passar e desaparecer. Ruy Belo

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Les Chants de Maldoror

John Bauer

Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito...Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta...acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau.

Lautréamont, in Os Cantos de Maldoror

domingo, 7 de março de 2021

quatro e meia da manhã



quatro e meia da manhã,

e eu escuto

meus amigos:

os lixeiros

e os ladrões

e gatos sonhando com

minhocas,

e minhocas sonhando

os ossos

do meu amor,

e eu não posso dormir

e logo vai amanhecer,

os trabalhadores vão se levantar

e eles vão procurar por mim

no estaleiro e dirão:

“ele tá bêbado de novo”,

mas eu estarei adormecido,

finalmente, no meio das garrafas e

da luz do sol,

toda a escuridão acabada,

os braços abertos como

uma cruz.


Charles Bukowski

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

3101 in "Livro de Eros" de Casimiro de Brito

Filme: The Pillow Book
"Deliciei-me quando transbordaste!
Deixaste de ser tu e passaste a ser um orgasmo líquido, lento e louco.
“Como? Diz o que sentiste.”
As águas perfumadas da tua cascata abandonaram o ninho e inundaram-me as coxas, que tu depois lambeste.
Bebendo-me, bebeste-te.
E deixaste em mim o teu perfume.

Por isso não me lavei o dia inteiro pois foste o meu vinho e andei embriagado até cair de novo nos teus braços, nas tuas pernas, no teu ninho que nunca mais acaba." 

693 in "Livro de Eros" de Casimiro de Brito


Filme: The Pillow Book
Tão breve a noite quando nos amamos. 
Quando nos lemos um ao outro. Ou quando, 
um no outro, escrevemos.

terça-feira, 14 de abril de 2020

sábado, 21 de março de 2020

Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada




                                     Flor-Garduno

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados
das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caeiro

sábado, 12 de outubro de 2019

Dor Elegante


                       John Gutmann

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Paulo Leminski

domingo, 22 de julho de 2018

Poema em linha recta



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos


terça-feira, 5 de julho de 2016

Paisagem

                            Flor Garduño

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A Little Closer to the Edge


                             Flor Garduño

Young enough to believe nothing
will change them, they step, hand-in-hand,

into the bomb crater. The night full
of  black teeth. His faux Rolex, weeks

from shattering against her cheek, now dims
like a miniature moon behind her hair.

In this version the snake is headless — stilled
like a cord unraveled from the lovers’ ankles.

He lifts her white cotton skirt, revealing
another hour. His hand. His hands. The syllables

inside them. O father, O foreshadow, press
into her — as the field shreds itself

with cricket cries. Show me how ruin makes a home
out of  hip bones. O mother,

O minutehand, teach me
how to hold a man the way thirst

holds water. Let every river envy
our mouths. Let every kiss hit the body

like a season. Where apples thunder
the earth with red hooves. & I am your son.


Ocean Vuong

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...