terça-feira, 27 de junho de 2023

Le Bateau Ivre


Rimbaud escreveu o incrível Le Bateau Ivre em 1871, em Charleville, aos 17 anos. Logo valeu-se dele para, em carta destinada a Paul Verlaine, usá-lo como cartão de visitas de sua obra. Os 25 quartetos compostos em versos alexandrinos com rimas alternadas constituem um dos pontos altos de sua produção poética. Deixemos o poema falar por si mesmo.



Le Bateau Ivre

Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J'étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

Dans les clapotements furieux des marées
Moi l'autre hiver plus sourd que les cerveaux d'enfants,
Je courus ! Et les Péninsules démarrées
N'ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.

La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots
Qu'on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l'oeil niais des falots!

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sures,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres, et lactescent,
Dévorant les azurs verts ; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend;

Où, teignant tout à coup les bleuités, délires!
Et rythmes lents sous les rutilements du jour,
Plus fortes que l'alcool, plus vastes que nos lyres,
Fermentent les rousseurs amères de l'amour!

Je sais les cieux crevant en éclairs, et les trombes
Et les ressacs et les courants : Je sais le soir,
L'aube exaltée ainsi qu'un peuple de colombes,
Et j'ai vu quelque fois ce que l'homme a cru voir!

J'ai vu le soleil bas, taché d'horreurs mystiques,
Illuminant de longs figements violets,
Pareils à des acteurs de drames très-antiques
Les flots roulant au loin leurs frissons de volets!

J'ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
Baiser montant aux yeux des mers avec lenteurs,
La circulation des sèves inouïes,
Et l'éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs!

J'ai suivi, des mois pleins, pareille aux vacheries
Hystériques, la houle à l'assaut des récifs,
Sans songer que les pieds lumineux des Maries
Pussent forcer le mufle aux Océans poussifs!

J'ai heurté, savez-vous, d'incroyables Florides
Mêlant aux fleurs des yeux de panthères à peaux
D'hommes ! Des arcs-en-ciel tendus comme des brides
Sous l'horizon des mers, à de glauques troupeaux!

J'ai vu fermenter les marais énormes, nasses
Où pourrit dans les joncs tout un Léviathan!
Des écroulement d'eau au milieu des bonaces,
Et les lointains vers les gouffres cataractant!

Glaciers, soleils d'argent, flots nacreux, cieux de braises!
Échouages hideux au fond des golfes bruns
Où les serpents géants dévorés de punaises
Choient, des arbres tordus, avec de noirs parfums!

J'aurais voulu montrer aux enfants ces dorades
Du flot bleu, ces poissons d'or, ces poissons chantants.
- Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades
Et d'ineffables vents m'ont ailé par instants.

Parfois, martyr lassé des pôles et des zones,
La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d'ombres aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu'une femme à genoux...

Presque île, balottant sur mes bords les querelles
Et les fientes d'oiseaux clabaudeurs aux yeux blonds
Et je voguais, lorsqu'à travers mes liens frêles
Des noyés descendaient dormir, à reculons!

Or moi, bateau perdu sous les cheveux des anses,
Jeté par l'ouragan dans l'éther sans oiseau,
Moi dont les Monitors et les voiliers des Hanses
N'auraient pas repêché la carcasse ivre d'eau;

Libre, fumant, monté de brumes violettes,
Moi qui trouais le ciel rougeoyant comme un mur
Qui porte, confiture exquise aux bons poètes,
Des lichens de soleil et des morves d'azur,

Qui courais, taché de lunules électriques,
Planche folle, escorté des hippocampes noirs,
Quand les juillets faisaient crouler à coups de triques
Les cieux ultramarins aux ardents entonnoirs;

Moi qui tremblais, sentant geindre à cinquante lieues
Le rut des Béhémots et les Maelstroms épais,
Fileur éternel des immobilités bleues,
Je regrette l'Europe aux anciens parapets!

J'ai vu des archipels sidéraux ! et des îles
Dont les cieux délirants sont ouverts au vogueur:
- Est-ce en ces nuits sans fond que tu dors et t'exiles,
Million d'oiseaux d'or, ô future Vigueur? -

Mais, vrai, j'ai trop pleuré ! Les Aubes sont navrantes.
Toute lune est atroce et tout soleil amer:
L'âcre amour m'a gonflé de torpeurs enivrantes.
Ô que ma quille éclate ! Ô que j'aille à la mer!

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache
Noire et froide où vers le crépuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesses, lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.


Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.


Arthur Rimbaud

O Barco Bêbado

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
viam turbilhonar marés de verde e anil.


O vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.


Então eu mergulhei nas águas do Poema
do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes – dilema
Lívido – um afogado afunda lentamente;

Onde, tingindo azulidades com quebrantos
E ritmos lentos sob o rutilante albor,
Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,
fermentam de amargura as rubéolas do amor!

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,
Ressacas e marés: conheço o entardecer,
A Aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Iluminando os longos glaciais;
Como atrizes senis em palcos cabalísticos,
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

Por meses eu segui, tropel de vacarias
Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias!

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas
Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.


Vi fermentarem pântanos imensos, ansas
Onde apodrecem Leviatãs distantes!
O desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!
Náufragos abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

Ah! se as crianças vissem o dourar das ondas,
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
– As espumas em flor ninaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

Mártir de pólos e de zonas misteriosas,
O mar a soluçar cobria os meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
e eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

Quase ilha a balouçar entre borras e brados
De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.

Mas eu, barco perdido em baías e danças,
Lançado no ar sem pássaros pela torrente,
De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de água ardente;

Livre, fumando em meio às virações inquietas,
Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Líquens de sol vômitos de azul escuro;

Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas
O céu ultramarino e seus funis de bruma; 

Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,
O cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris,
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!


Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas
Que o delírio dos céus desvela ao viajor:
– É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!
Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
trêmulo como a asa de uma borboleta.

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

Tradução de Augusto de Campos

não discuto


Flor Garduño

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino


Paulo Leminski


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Amei Demais

toshiko-okanoue

 

Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais

todas as coisas que na vida eu emprenhei.

Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais,

como as tais coisas nas quais nunca pensei.


Demais foram as sombras. Mais e mais.

Cada vez mais ardentes as sombras que tirei

do imenso mar de sol, sem praia ou cais,

de onde parti sem saber por que embarquei.


Amei demais. Sempre demais. E o que dei

está espalhado pelos sítios onde vais

e pelos anos longos, longos, que passei


à procura de ti. De mim. De ninguém mais.

E os milhares de versos que rasguei

antes de ti, eram perfeitos. Mas banais.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Canção da Minha Tristeza

Rob Gonsalves Painting Sea Books Birds


Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu
virás despentear os meus cabelos.


Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia
vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.
Ah, meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.


A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.
Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.
Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.


Nada acontece. Nada. E eu procuro-te
por dentro da noite, com mãos de surpresa.
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.


E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,
que não vens despentear os meus cabelos?
Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.


Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.


Joaquim Pessoa 

Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo

Flor Garduño


Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo

nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre.

Joaquim Pessoa

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O tédio é a perda da capacidade de se iludir.

 


(...)

O tédio... É talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir...


O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.”


Bernardo Soares


O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...