terça-feira, 24 de novembro de 2015

Foo Fighters - The Pretender


RUBRICA OLHARES



Nós dizemos revolução - Por Beatriz Preciado


Parece que os gurus da velha Europa se obstinam ultimamente a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy, Indignados, handi-trans-gays-lésbicas-intersex e postporn que não poderemos fazer a revolução porque não temos uma ideologia. Eles dizem “uma ideologia” como minha mãe dizia “um marido”. Pois bem, não precisamos nem de ideologia nem de marido. As novas feministas, não precisamos de marido porque não somos mulheres. Assim como não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem comunismo nem liberalismo. Nem o refrão católico-muçulmuno-judeu. Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do batedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais… Quanto de Galileu precisaremos desta vez para re-aprender a nomear as coisas, nós mesmos? Eles nos fazem a guerra econômica a golpe de facão digital neo-liberal. Mas nós não choraremos a morte do Estado-providência, porque o Estado-providência era também o hospital psiquiátrico, o centro de inserção das pessoas com deficiência, a prisão, a escola patriarcal-colonial-heterocentrada. Está na hora de pôr Foucault na dieta handi-queer e de escrever a morte da Clínica. Está na hora de convidar Marx para um ateliê eco-sexual. Não vamos adotar o estado disciplinar contra o mercado neoliberal. Esses dois já travaram um acordo: na nova Europa, o mercado é a única razão governamental, o Estado se tornou o braço punitivo cuja única função será aquela de re-criar a ficção da identidade nacional por meio do medo securitário. Nós não desejamos nos definir como trabalhadores cognitivos nem como consumidores farmacopornográficos. Nós não somos Facebook, nem Shell, nem Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não desejamos produzir francês, e tampouco europeu. Não desejamos produzir. Nós somos a rede viva descentralizada. Nós recusamos uma cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução. Nós queremos uma cidadania total definida pelo compartilhamento das técnicas, dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a guerra limpa se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é a paz, o afeto total. Eles dizem crise, nós dizemos revolução.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Tratado geral das grandezas do ínfimo



                                  John Gutmann
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.


Manoel de Barros

O apanhador de desperdícios

                                       "Renée Jacobi" (1930)


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.



Manoel de Barros

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Uma didática da invenção

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.


Manoel de Barros

terça-feira, 10 de novembro de 2015

CARTA

                                               toshiko-okanoue

1. se v.exa. me permite
eu gostaria de dizer o que penso.

2. em primeiro lugar penso
que v.exa. anda
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.

3. v.exa. dirá que eu estou afirmando
que v.exa. anda para trás.

4. na verdade, nada me impede de afirmar que
v.exa. anda para trás.
não foi isso porém o que eu disse.

5. com efeito, não sei
se v.exa. anda para trás. segundo penso,
v.exa. anda no sentido oposto ao dos ponteiros
do relógio.

6. seria necessário poder afirmar com toda a
segurança que os ponteiros do relógio
andam para a frente,
para poder afirmar
com igual segurança
que v.exa. anda para trás.

7. mas quem está em condições de
afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente? ninguém está
em condições de afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente, porque, como v.exa. sabe,
os ponteiros do relógio andam à roda.

8. a única coisa que se pode afirmar com toda a
segurança
é que os ponteiros do relógio andam
à roda para um lado e v.exa.
anda à roda para o outro. os ponteiros
do relógio rodam para um lado e v.exa. roda
para o outro. de modo que v.exa. com
o seu movimento anula o movimento
dos ponteiros do relógio e vice-versa.

9. na verdade é como
se v.exa. não andasse e como

se os ponteiros do relógio também não andassem.

Alberto Pimenta

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Toda influência é imoral


                                                   August Sander

“- Não existe boa influência – respondeu Lord Henry. – Toda influência é imoral – imoral do ponto de vista científico -, porque influenciar uma pessoa é dar-lhe sua própria alma. Ela já não pensa com seus próprios pensamentos nem sente suas próprias paixões. Suas virtudes não são reais para ela. Seus pecados, se existem tais coisas, são emprestados. Torna-se um eco da música de outra pessoa. O objetivo da vida é o autodesenvolvimento. Cumprir a própria natureza perfeitamente – essa é a razão por que estamos aqui. As pessoas têm medo de si mesmas, hoje em dia. Esqueceram-se de seu principal dever. Claro que são caridosas: alimentam os famintos, vestem os mendigos. Mas suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. O terror da sociedade, que é a base da moral, e o terror de Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam. Mas eu acredito que se um homem vivesse sua vida completamente, desse forma a todo sentimento, expressão a todo pensamento, a realidade a cada sonho, acredito que o mundo ganharia um impulso novo de alegria. Mas o mais corajoso dos homens tem medo de si mesmo. Cada impulso que lutamos para estrangular aninha-se na mente e nos envenena. O corpo peca uma vez e não tem nada mais a ver com o pecado, pois a ação é um modo de purificação. Nada permanece, a não ser a lembrança de um prazer ou desgosto. A única maneira de se livrar de uma tentação é entregar-se a ela…”


Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray

Visita-me Enquanto não Envelheço


                                                  August Sander
visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto, Salsugem

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...