A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio
das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que o
excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e
nas aves, nos campos e nas cidades, nos actos, nas palavras e
pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de
mundos que já pereceram.
Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me
encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor
e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites
tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.
Na minha presença hodierna têm parte as idades
anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do
espaço antes que o mundo fosse.
Na noite onde nasceram as estrelas comecei a
constelar-me de ser.
Não há um único átomo da mais longínqua estrela
que não colaborasse no meu ser.
Porque Afonso Henriques existiu, eu sou. Porque
Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto -
se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal
tivesse governado (...) anos.
Shakespeare é parte de mim.
Para mim trabalhou Cromwell quando arquitectou a Inglaterra. Ao
ganhar
com Roma, Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.
Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste
sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um
místico índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou
no meu ser actual. Pregou moral Confúncio à minha presença de
hoje. O primeiro homem que achou o fogo, o que inventou a roda, o
primeiro que ideou a seta - se hoje eu sou eu é porque eles
existiram.
Álvaro de Campos
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