domingo, 23 de março de 2014

PESSOA REVISITED


Esta noite encontro-te, poeta.

Esta noite, que não é antiquíssima,

Nem idêntica por dentro

Ao silêncio,

Sendo apenas o lúcido abismo

Da minha insônia,

Sigo da margem

Ao rio dos teus versos.

Alguma vez todos os poetas

Se encontraram contigo.

Mesmo os menores como eu

Ou o meu vizinho do lado,

Que é contabilista, não faz versos

E arrepela violino nas horas de lazer.

Esta noite olho e penso

Os versos reacionários,

Em que reinventaste o sentido das palavras

E te negavas.

Negavas-te na irônica contradição

Dos conceitos escalpelizados

E até

Na matemática escorreita da correspondência comercial,

Com o mesmo à vontade

Com que um Einstein especula com espaços interestelares

E a diurna e esquisita noite galáctica.

O teu gênio desmedido

Frustrava em ti

O burocrata para uso externo.

E rias, alto

Como um insulto amargo,

Por detrás

Do Álvaro de Campos snob,

Ou oculto

Na frieza geométrica e longínqua

Do Ricardo Reis.

Cerebrais, frios, são,

Dizem,

Os teus versos.

São-no como quem fala, lenta,

Pausadamente,

Dissimulando na garganta o nó da angústia.

Diante

Da alheia ignorância do tempo absurdo,

Com a miopia e o bigode estreito

Do manga de alpaca a fingir cabotismos,

Habitavam

O gênio e a náusea.

Com o gesto banal e repetido de quem

Acende o cigarro

Abriste as portas do espanto

E fizeste acreditar que eram as da dispensa.

Por isso

Hoje nos limitamos a entrar,

Por isso dormimos hoje com a cabeça

Nos teus versos,

Falamos com ar despreocupado

No Pessoa, à hora do café

E visitamos-te com secreta religiosidade.

Agora que tu te foste,

Sem que déssemos por tal,

Desapercebido, caminhando nos bicos dos pés,

Como o fazias em vida,

Em vão te buscamos,

Em vão rezam por ti compridas laudas

Em jornais a ressumar cultura,

Em vão te imitamos,

Em vão a estridência do nosso arrependimento.

Lá onde moras não há som

E nem sequer te incomodam no leito

As duras pedras e a terra úmida das raízes.

No dia 30 de Novembro de 1935

Aqui fazia sol

E eu, na beira do passeio,

Via passar os elétricos sem os entender

E resumia o sonho à nitidez gulosa

Do pão com manteiga,

Sentado a milhares de quilômetros da tua morte.

Perdoai pois se não fui

Ao teu enterro anônimo.

Rui Knopfli (1932)

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