domingo, 7 de setembro de 2014

Branco e Vermelho



A dor, forte e imprevista, 
Ferindo-me, imprevista, 
De branca e de imprevista 
Foi um deslumbramento, 
Que me endoidou a vista, 
Fez-me perder a vista, 
Fez-me fugir a vista, 
Num doce esvaimento. 
Como um deserto imenso, 
Branco deserto imenso, 
Resplandecente e imenso, 
Fez-se em redor de mim. 

Todo o meu ser, suspenso, 
Não sinto já, não penso, 
Pairo na luz, suspenso... 
Que delícia sem fim! 
Na inundação da luz 
Banhando os céus a flux, 
No êxtase da luz, 
Vejo passar, desfila 
(Seus pobres corpos nus 
Que a distancia reduz, 
Amesquinha e reduz 
No fundo da pupila) 
Na areia imensa e plana 
Ao longe a caravana 
Sem fim, a caravana 
Na linha do horizonte 
Da enorme dor humana, 
Da insigne dor humana... 
A inútil dor humana! 
Marcha, curvada a fronte. 
Até o chão, curvados, 
Exaustos e curvados, 
Vão um a um, curvados, 
Escravos condenados, 
No poente recortados, 
Em negro recortados, 
Magros, mesquinhos, vis. 
A cada golpe tremem 
Os que de medo tremem, 
E as pálpebras me tremem 
Quando o açoite vibra. 
Estala! e apenas gemem, 
Palidamente gemem, 

A cada golpe gemem, 
Que os desequilibra. 
Sob o açoite caem, 
A cada golpe caem, 
Erguem-se logo. Caem, 
Soergue-os o terror... 
Até que enfim desmaiem, 
Por uma vez desmaiem! 
Ei-los que enfim se esvaem, 
Vencida, enfim, a dor... 
E ali fiquem serenos, 
De costas e serenos. 
Beije-os a luz, serenos, 
Nas amplas frontes calmas. 
Ó céus claros e amenos, 
Doces jardins amenos, 
Onde se sofre menos, 
Onde dormem as almas! 
A dor, deserto imenso, 
Branco deserto imenso, 
Resplandecente e imenso, 
Foi um deslumbramento. 
Todo o meu ser suspenso, 
Não sinto já, não penso, 
Pairo na luz, suspenso 
Num doce esvaimento. 
Ó morte, vem depressa, 
Acorda, vem depressa, 
Acode-me depressa, 
Vem-me enxugar o suor, 
Que o estertor começa. 
É cumprir a promessa. 
Já o sonho começa... 
Tudo vermelho em flor... 

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

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