segunda-feira, 13 de abril de 2015
um dia destes tenho o dia inteiro para morrer
"um
dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero
que me não doa,
um
dias destes em todas as partes do corpo,
onde
por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um
dia inteiro para morrer completamente,
quando
a fruta com seus muitos vagares amadura,
o
dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh
será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo,
e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas linhas"
Herberto
Helder,
Servidões
–
Assírio & Alvim
a última bilha de gás durou dois meses e três dias
a
última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás
dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra
[bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse
[nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a
[habita e move,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a
[habita e move,
não
me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!
Herberto Hélder
A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014
sexta-feira, 10 de abril de 2015
nunca mais quero escrever numa língua voraz
nunca
mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há
entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo —
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-las numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio
quero encontrar uma voz paupérrima,para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo —
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-las numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio
in
"Servidões"
Herberto
Helder, 1930 - 2015
sábado, 28 de março de 2015
A Infância de Herberto Helder
No
princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas
o Espírito de Deus
abraçava as águas
Nesse
tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
Nesse
tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
Não
sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
Eu
era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
Nesse
tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
Isso
foi antes
de aprender a álgebra
de aprender a álgebra
Tolentino
Mendonça
queria fechar-se inteiro num poema
queria fechar-se inteiro
num poema
lavrado em língua ao
mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem
os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar
escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por
cima.
Herberto Helder
Subscrever:
Mensagens (Atom)
O amor lança fora o medo
Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...
-
Enquanto eu vir o sol luzir nas folhas E sentir toda a brisa nos cabelos Não quererei mais nada. Que me pode o Destino co...
-
Li hoje quase duas páginas Do livro dum poeta místico, E ri como quem tem chorado muito. Os poetas místicos são filósofos doentes,...
-
nunca mais quero escrever numa língua voraz, porque já sei que não há entendimento, quero encontrar uma voz paupérrima, para nada atmos...