quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Amor - pois que é palavra essencial

                Flor Garduño

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade

Exercícios de Estilo - Namorados

                     Silver Gelatin : Flor Garduno

[…]
Domingo de manhã fui com a Amada para a praia nos rochedos junto do mar vi pela primeira vez o seu corpo nu feito espuma e onda. Ficámos calados (como quem está só) escondidos de todos à beira-água (como quem ama, apetecendo-a como os suicidas), o seu corpo cheirava a maresia (cheiraria?). Numa doidice de beijos e carícias leves beijei seus pés de espuma macia… em lírica, diria: pés de sereia; em realística, diria: pés de virgem (feia); em novelística, da antiga, diria: pés de deusa brinca-brincando na areia; em novelística, novíssima: patitas catitas de centopeia…, beijei seus pés; por ali mesmo a comecei a beijar. Caprichos de libertino: o corpo da Amada ficou lá nos rochedos à beira-água onda infatigável desfeito liquefeito brisa de maresia pairando no bafo quente do ar e eu guardo no meu quarto na minha colecção mais um sexo de donzela conservado em álcool e memória, numa mistura fácil de três por dois, tintos.
[…]

Luiz Pacheco

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

De Si(lên)cio dos Poetas

                     PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA

A crueldade reside ainda, e talvez sobretudo, no recusar-se a servir de objecto de prazer, de conciliação com a realidade. Ê assim que este tipo de arte esteticamente emancipada (acima de tudo esta chamada “poesia moderna) não funciona como representação <clara e pouco usual> da realidade, nem como hipóstase de um mundo imaginado ou como ersatz para frustração existencial, nem como mito: funciona como recusa de colaborar com a totalidade na sua lenta mas constante destruição do indivíduo e da sua livre e autónoma consciência.


Alberto Pimenta

porco trágico I


                                        PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.
o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.

Alberto Pimenta

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Enquanto o papa não chega

                            PARKEHARRISON, ROBERT AND SHANA


Enquanto o papa não chega
Todos  dão a sua achega*

POR  EXEMPLO:
As autoridades convencem com os dentes.
Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura
Os investidores apostam na sementeira
de guarda-republicanos.
Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.
Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular. 
Os tecnocratas correm o fecho-éclair
para fazer luz sobre o assunto. 
Os psiquiatras metem o dedo no olho do
cliente para lhe aprofundar os desvios. 
Os mestres ensinam os cães particulares
a defecar nos passeios públicos. 
Os escritores erguem a voz acima de todas para
dizer que todas as vozes se devem fazer ouvir.
Os funcionários públicos zelam por que tudo
o que não é proibido seja obrigatório.
Os sacerdotes encaminham a alma
para o sétimo céu.
Os internados no manicómio recebem
coleiras novas com o número fiscal.
Os jornalistas dão peidos que abalam a
qualidade de vida da cidade.
O povo digere tudo porque tem
dentes até ao cu.
Os polícias de choque referem-se
às conquistas de abril.
Os anjos da guarda interceptam os
pacotes com as bombas e explodem.

A visita do papa, Alberto Pimenta


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Do amor

                            Flor Garduño
“A única função do amor é a de ajudar-nos a suportar essas tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana e para toda a eternidade.”

Emil Cioran

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...