terça-feira, 25 de março de 2014

Carta ao poeta Eugénio Evtushenko a propósito de uma suposta autocrítica



Não te arrependas de nada.
Um verso está sempre certo
mesmo quando errado. A verdade
também, mesmo quando dói

ou fere ou parece inoportuna.
A verdade nunca é inoportuna.
O teu inconformismo é o preço
da nossa libertação e teus versos

florescem no coração do povo.
Não. Não te arrependas de nada.
Não torças o verso, não obrigues
a palavra: um poeta está

sempre certo. Não permitas que o óxido
dos políticos entre na lâmina
dos teus versos. Um poeta não se vende,
não se compra, não se emenda.

A um poeta corta-se-lhe a cabeça.
E uma cabeça cortada não dói, mas
tem uma importância danada.


Rui Knopfli

domingo, 23 de março de 2014

PESSOA REVISITED


Esta noite encontro-te, poeta.

Esta noite, que não é antiquíssima,

Nem idêntica por dentro

Ao silêncio,

Sendo apenas o lúcido abismo

Da minha insônia,

Sigo da margem

Ao rio dos teus versos.

Alguma vez todos os poetas

Se encontraram contigo.

Mesmo os menores como eu

Ou o meu vizinho do lado,

Que é contabilista, não faz versos

E arrepela violino nas horas de lazer.

Esta noite olho e penso

Os versos reacionários,

Em que reinventaste o sentido das palavras

E te negavas.

Negavas-te na irônica contradição

Dos conceitos escalpelizados

E até

Na matemática escorreita da correspondência comercial,

Com o mesmo à vontade

Com que um Einstein especula com espaços interestelares

E a diurna e esquisita noite galáctica.

O teu gênio desmedido

Frustrava em ti

O burocrata para uso externo.

E rias, alto

Como um insulto amargo,

Por detrás

Do Álvaro de Campos snob,

Ou oculto

Na frieza geométrica e longínqua

Do Ricardo Reis.

Cerebrais, frios, são,

Dizem,

Os teus versos.

São-no como quem fala, lenta,

Pausadamente,

Dissimulando na garganta o nó da angústia.

Diante

Da alheia ignorância do tempo absurdo,

Com a miopia e o bigode estreito

Do manga de alpaca a fingir cabotismos,

Habitavam

O gênio e a náusea.

Com o gesto banal e repetido de quem

Acende o cigarro

Abriste as portas do espanto

E fizeste acreditar que eram as da dispensa.

Por isso

Hoje nos limitamos a entrar,

Por isso dormimos hoje com a cabeça

Nos teus versos,

Falamos com ar despreocupado

No Pessoa, à hora do café

E visitamos-te com secreta religiosidade.

Agora que tu te foste,

Sem que déssemos por tal,

Desapercebido, caminhando nos bicos dos pés,

Como o fazias em vida,

Em vão te buscamos,

Em vão rezam por ti compridas laudas

Em jornais a ressumar cultura,

Em vão te imitamos,

Em vão a estridência do nosso arrependimento.

Lá onde moras não há som

E nem sequer te incomodam no leito

As duras pedras e a terra úmida das raízes.

No dia 30 de Novembro de 1935

Aqui fazia sol

E eu, na beira do passeio,

Via passar os elétricos sem os entender

E resumia o sonho à nitidez gulosa

Do pão com manteiga,

Sentado a milhares de quilômetros da tua morte.

Perdoai pois se não fui

Ao teu enterro anônimo.

Rui Knopfli (1932)

domingo, 16 de março de 2014

Poesia:


“words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes
e medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalável” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jakobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valery), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranquilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com ideias” (Mallarmé),
“música que se faz com ideias”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticismo of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
impossible hecho possible” (Garcia
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo Leminski)…



Paulo Leminski

AUTO-RETRATO


De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes
do riso claro à angústia mais amarga.


De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas virtualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracional, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga da perna, à fímbria da nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suiço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.


Rui Knopfli

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Ah, quero as relvas e as crianças!



                      Joan Miró

Ah, quero as relvas e as crianças!
Quero o coreto com a banda!
Quero os brinquedos e as danças —
A corda com que a alma anda.
Quero ver todas brincar
Num jardim onde se passa,
Para ver se posso achar
Onde está minha desgraça.
Ah, mas minha desgraça está
Em eu poder querer isto —
Poder desejar o que há.
[...]
  
Fernando Pessoa

Amei-te e por te amar

Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...


Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.


Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.


Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...


Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?


Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.


Em que és [...] fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...


[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...


Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma!


E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…


Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?


Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...


Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...


Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.


Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?


Talvez sintas como eu
E não saibas senti-lo...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobri-lo,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...


Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...



                              Rudolf Nureyev

Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...


E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.


Fernando Pessoa



domingo, 26 de janeiro de 2014

A Descoberta da Rosa

                         toshiko-okanoue

«Rosas não me dizem nada…»

Dez anos de poesia, fora a gaveta
e descubro que, a não ser ocasionalmente
e em ar de troça, jamais me debrucei
deveras sobre o tema da rosa. De resto
eram para mim, creio, marginais as flores.
Vícios de formação e juventude,
uma tão intensa preocupação do humano
que olvidei a discreta angústia da rosa.
Outros, não o ignoro, nela tiveram seu princípio
para a deixarem depois esquecida entre as páginas
de um qualquer velho livro, tão cheios eles,
de ternura e simpatia fraternas, coisas
que já eludem este coração envilecido.
Salvo o devido respeito por tudo quanto é útil
e estimável nesta terra, faltam-me o tempo
e o ânimo para as empreitadas mais ingentes.
E o pouco que me sobra tenciono aplicá-lo
em tarefas humildes como o cultivo
destes versos, algum súbito amor inadiável
e a lenta e minuciosa descoberta da rosa.

Rui Knopfli



O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...