sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio acompanha a manhã.

Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas de céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava — uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou dum pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.

E desejo só cores. As cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. Cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor — e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez voltará à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca das cores.


(Cesare Pavese "Trabalhar Cansa", Cotovia, trad. de Carlos Leite)   

sábado, 3 de outubro de 2015

Mito


Virá o dia em que o jovem deus será um homem, 
sem sofrimento, com o morto sorriso do homem
 
que compreendeu. Também o sol se move longínquo
 
avermelhando as praias. Virá o dia em que o deus
 
já não saberá onde eram as praias de outrora.
 

Acorda-se uma manhã em que o Verão morreu,
 
e nos olhos tumultuam ainda esplendores
 
como ontem e no ouvido os fragores do sol
 
feito sangue. A cor do mundo mudou.
 
A montanha já não toca o céu; as nuvens
 
já não se amontoam como frutos; na água
 
já não transparece um seixo. O corpo dum homem
 
curva-se pensativo onde um deus respirava.
 

O grande sol acabou, e o cheiro da terra
 
e a rua livre, colorida de gente
 
que ignorava a morte. Não se morre de Verão.
 
Se alguém desaparecia, havia o jovem deus
 
que vivia por todos e ignorava a morte.
 
Nele a tristeza era uma sombra de nuvens.
 
O seu passo pasmava a terra.
 

                                        Agora pesa
 
o cansaço sobre todos os membros do homem,
 
sem sofrimento: o calmo cansaço da madrugada
 
que abre um dia de chuva. As praias sombreadas
 
não conhecem o jovem a quem outrora bastava
 
que as olhasse. Nem o mar do ar revive
 
na respiração. Cerram-se os lábios do homem
 
resignados, para sorrir frente à terra.
 

Cesare Pavese, 'Trabalhar Cansa'
 
com a tradução de Carlos Leite
 

Valentin Feldman


Em 1942, jovem filósofo francês Valentin Feldman, integrante da Resistência Francesa, diante de um pelotão de fuzilamento formado por soldados do Governo de Vichy, aliado dos nazistas, gritou para seus algozes, segundos antes de eles dispararem:
- Imbecis, é por vocês que vou morrer!

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

MIOPIA


não te sentes capaz de entender
o dia de hoje, baby?
espera que ele seja o dia de ontem.

nâo te sentes capaz de entender
o dia de ontem,  baby?
espera que ele seja o dia de amanhâ.

nâo te sentes capaz de entender
o dia de amanhâ, baby?
espera que ele seja o dia de hoje.

Alberto Pimenta

Louvor do Revolucionário

Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?

Onde quer que todos calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.

Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.

Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.


Bertold Brecht, Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas (Tradução de Paulo Quintela)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

JOSÉ


      E agora, José? 
              A festa acabou, 
              a luz apagou, 
              o povo sumiu, 
              a noite esfriou, 
              e agora, José? 
              e agora, você? 
              você que é sem nome, 
              que zomba dos outros, 
              você que faz versos, 
              que ama, protesta? 
              e agora, José?


              Está sem mulher, 
              está sem discurso, 
              está sem carinho, 
              já não pode beber, 
              já não pode fumar, 
              cuspir já não pode, 
              a noite esfriou, 
              o dia não veio, 
              o bonde não veio, 
              o riso não veio 
              não veio a utopia 
              e tudo acabou 
              e tudo fugiu 
              e tudo mofou, 
              e agora, José?


              E agora, José? 
              Sua doce palavra, 
              seu instante de febre, 
              sua gula e jejum, 
              sua biblioteca, 
              sua lavra de ouro, 
              seu terno de vidro, 
              sua incoerência, 
              seu ódio - e agora?


              Com a chave na mão 
              quer abrir a porta, 
              não existe porta; 
              quer morrer no mar, 
              mas o mar secou; 
              quer ir para Minas, 
              Minas não há mais. 
              José, e agora?


              Se você gritasse, 
              se você gemesse, 
              se você tocasse 
              a valsa vienense, 
              se você dormisse, 
              se você cansasse, 
              se você morresse... 
              Mas você não morre, 
              você é duro, José!


              Sozinho no escuro 
              qual bicho-do-mato, 
              sem teogonia, 
              sem parede nua 
              para se encostar, 
              sem cavalo preto 
              que fuja a galope, 
              você marcha, José! 
              José, para onde?

              Carlos Drummond de Andrade

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...