terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

elegia múltipla VI




























The Orange Pencil is a canvas print designed and produced by Mineheart

design by https://mineheart.com/

São claras as crianças como candeias sem vento,

seu coração quebra o mundo cegamente.

E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema,

pelo terror dos dias, quando

em sua alma os parques são maiores e as águas sujas

param junto à eternidade.

As crianças criam. São esses os espaços

onde nascem as suas árvores.


Enquanto as campânulas se purificam no cimo do fogo,

as crianças esmigalham-se.

Seu sangue evoca

a tristeza, tristeza, a tristeza

primordial.

— Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram

pelos séculos

entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes

e o olhar infinito de quem não possui alma.


Seu grito remonta ao verão. Inspira-as

a velocidade da terra.

As crianças enlouquecem em coisas de poesia.

Escutai um instante como ficam presas

no alto desse grito, como a eternidade as acolhe

enquanto gritam e gritam.


— É-lhes dado o pequeno tempo de um sono

de onde saem

assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta.

Dali a vida de um poema tira

por um lado apaixonadamente; por outro,

purificação.

Nelas se festeja a imensidade

dos meses, a melancolia, a silenciosa

pureza do mundo.


Quem há-de pensar para as crianças, sem ter

espinhos na saliva e as vozes

desertas até ao fundo? É vendo-se aos espelhos,

no seguimento da noite,

que as crianças aparecem com o horror

da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes

crianças vigiadoras —

cantando, pensando, dormindo loucamente.


Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas

que a vingança não afaste.

As crianças invasoras percorrem

os nomes — enchem de uma fria

loucura inteligente

as raízes e as folhas da garganta.

Aprendemos com elas os pecados do ar,

a iluminação, o mistério

da carne. Partem depois, sangrentas,

inomináveis. Partem de noite

noite — extremas e únicas.

— E nada mais somos do que o Poema onde as crianças

se distanciam loucamente.

                                                Loucamente.

herberto helder

poesia toda

a colher na boca

assírio & alvim


terça-feira, 4 de julho de 2023

Alice no País das Maravilhas

         Alice fotografada por Lewis Carroll


— Você me ama? Perguntou Alice.

— Não, não te amo! Respondeu o Coelho Branco.

Alice franziu a testa e juntou as mãos como fazia sempre que se sentia ferida.

—Vês? Retorquiu o Coelho Branco.

Agora vais começar a perguntar-te o que te torna tão imperfeita e o que fizeste de mal para que eu não consiga amar-te pelo menos um pouco.

Sabes, é por esta razão que não te posso amar. Nem sempre serás amada Alice, haverá dias em que os outros estarão cansados e aborrecidos com a vida, terão a cabeça nas nuvens e irão magoar-te.

Porque as pessoas são assim, de algum modo sempre acabam por ferir os sentimentos uns dos outros, seja por descuido, incompreensão ou conflitos consigo mesmos.

Se tu não te amares, ao menos um pouco, se não crias uma couraça de amor próprio e de felicidade ao redor do teu Coração, os débeis dissabores causados pelos outros tornar-se-ão letais e destruir-te-ão.

A primeira vez que te vi fiz um pacto comigo mesmo: “Evitarei amar-te até aprenderes a amar-te a ti mesma!”


Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Mulheres


.           foto de Flor Garduño


Que amante dos diabos é que eu sou?

Prometi-lhe toda uma série de experiências inesquecíveis num futuro próximo, e depois adormeci com o seu corpo colado no meu. 


De manhã acordei doente. Olhei pra ela nua ao meu lado. Mesmo depois da véspera, tudo; 

Ela era um verdadeiro Milagre. Nunca tinha conhecido uma Mulher tão Imensa, Livre, 

Bela, Forte, Corajosa; tão Brava quanto

Doce e Inteligente. 


Quem tinham sido os seus amores? 

Por que é que falharam? 

Nada mais importa. 


Se tudo é menos do que Agora.


Charles Bukowski

O amor, quando se revela,

    Gustav Klimt


O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.

Sabe bem olhar p'ra ela,

Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há-de dizer.

Fala: parece que mente...

Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,

Se pudesse ouvir o olhar,

E se um olhar lhe bastasse

P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;

Quem quer dizer quanto sente

Fica sem alma nem fala,

Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar...


Fernando Pessoa - 1928

Amor nos Tempos de Cólera


.        Toshiko Okanoue

 "A suposição de que a plenitude emocional depende inexoravelmente da presença de uma parceria amorosa é, em si mesma, uma ilusão sedutora, alimentada por convenções sociais e narrativas populares. Sob essa perspectiva, há uma tentação irresistível de buscar fora de si mesmo a fonte última de contentamento, depositando nas mãos de outro ser humano a chave para a felicidade. Contudo, essa visão, por mais persuasiva que possa parecer, está fadada ao desencanto e à insatisfação.

A felicidade genuína não pode ser concebida como uma mercadoria pronta para ser adquirida, tampouco como uma entidade externa a ser encontrada e conquistada. Ela é um estado interno que se desenvolve a partir da compreensão e do cultivo de um profundo amor-próprio e autenticidade. É na descoberta de quem somos, na aceitação de nossas virtudes e imperfeições, que encontramos as bases sólidas para a felicidade duradoura.

Ao transferir a responsabilidade por nosso bem-estar a um relacionamento romântico, incorremos em uma armadilha emocional. Colocamos expectativas desmedidas sobre o outro, sobrecarregando-o com o fardo de suprir todas as nossas necessidades afetivas. No entanto, é uma ilusão imaginar que uma única pessoa possa satisfazer todas as dimensões de nossa existência.

Ademais, devemos considerar que a busca frenética por um parceiro pode levar à desvalorização da individualidade, à submissão a normas sociais obsoletas e à renúncia de nossos próprios desejos e aspirações. Ao nos ancorarmos em relacionamentos como única fonte de alegria, corremos o risco de negligenciar nossos próprios interesses e necessidades, tornando-nos reféns da vontade alheia.

Nesse sentido, é crucial cultivar uma compreensão madura do amor e da felicidade, reconhecendo que a plenitude não é alcançada através da dependência emocional, mas sim da interdependência saudável. Os relacionamentos amorosos, quando baseados em reciprocidade, respeito mútuo e apoio mútuo, podem ampliar nossas experiências e trazer uma satisfação adicional. No entanto, eles nunca devem ser vistos como o único caminho para a realização pessoal."

Gabriel García Márquez

terça-feira, 27 de junho de 2023

tão fortes eram que sobreviveram à língua morta

Flor Garduño

tão fortes eram que sobreviveram à língua morta,
esses poucos poemas acerca do que hoje me atormenta,
décadas, séculos, milénios,
e eles vibram,
e entre os objectos técnicos no apartamento,
rádio, tv, telemóvel,
relógios de pulso,
esmagam-me por assim dizer com a sua verdade última
sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra que não respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de respirar
sobre o pó da terra que respira,
entre o poema sumério e este poema de curto fôlego,
mas que talvez respire um dia,
ou dois, ou três dias mais:
quanto às coisas sumérias: as mãos da rapariga,
o cabelo da estreita rapariga,
a luz que estremecia nela,
tudo isso perdura em mim pelos milénios fora,
disso, oh sim, é que eu estou vivo e estremeço ainda

que um nó de sangue na garganta

que um nó de sangue na garganta,
um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,
um nó de sangue na garganta,
um nó apenas duro

Herberto Helder
(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...