quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Amei-te e por te amar

Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...


Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.


Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.


Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...


Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?


Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.


Em que és [...] fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...


[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...


Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma!


E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…


Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?


Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...


Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...


Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.


Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?


Talvez sintas como eu
E não saibas senti-lo...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobri-lo,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...


Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...



                              Rudolf Nureyev

Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...


E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.


Fernando Pessoa



domingo, 26 de janeiro de 2014

A Descoberta da Rosa

                         toshiko-okanoue

«Rosas não me dizem nada…»

Dez anos de poesia, fora a gaveta
e descubro que, a não ser ocasionalmente
e em ar de troça, jamais me debrucei
deveras sobre o tema da rosa. De resto
eram para mim, creio, marginais as flores.
Vícios de formação e juventude,
uma tão intensa preocupação do humano
que olvidei a discreta angústia da rosa.
Outros, não o ignoro, nela tiveram seu princípio
para a deixarem depois esquecida entre as páginas
de um qualquer velho livro, tão cheios eles,
de ternura e simpatia fraternas, coisas
que já eludem este coração envilecido.
Salvo o devido respeito por tudo quanto é útil
e estimável nesta terra, faltam-me o tempo
e o ânimo para as empreitadas mais ingentes.
E o pouco que me sobra tenciono aplicá-lo
em tarefas humildes como o cultivo
destes versos, algum súbito amor inadiável
e a lenta e minuciosa descoberta da rosa.

Rui Knopfli



A ciência, a ciência, a ciência...

 
                           toshiko-okanoue
A ciência, a ciência, a ciência...
Ah, como tudo é nulo e vão!
A pobreza da inteligência
Ante a riqueza da emoção!
Aquela mulher que trabalha
Como uma santa em sacrifício,
Com quanto esforço dado ralha!
Contra o pensar, que é o meu vício!
A ciência! Como é pobre e nada!
Rico é o que alma dá e tem.
[...]

Fernando Pessoa

Naturalidade

                     National Geographic Magazine, 2005
Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando. 
Rui Knopfli

sábado, 18 de janeiro de 2014

Porque

                                 John Bauer

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner

Cântico Negro

                       John Bauer

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "Vem por aqui!"? 


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "Vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio

Quase

               Rodin
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...


Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,


Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,


Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios... 


Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto


Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém... 


Mário de Sá Carneiro



sábado, 11 de janeiro de 2014

Não Calar



                                   Rodin

"Há uma regra fundamental quando se vive como nós estamos a viver – em sociedade, porque somos uns animais gregários – que é simplesmente não calar. Não calar! Que isso possa custar em comunidades várias a perda de emprego ou más interpretações já o sabemos, mas também não estamos aqui para agradar a toda a gente. Primeiro, porque é impossível, e segundo, porque se a consciência nos diz que o caminho é este então sigamo-lo e quanto às consequências logo veremos."

José Saramago in 'Uma Longa Viagem com José Saramago' 

Che Guevara

Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos [patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de [consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das [igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece

Sophia de Mello Breyner Andresen
 

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
   Era uma vez uma princesa
   no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Dispersão

 
Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto 
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

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Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...

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Mário de Sá-Carneiro

domingo, 5 de janeiro de 2014

                                      John Bauer
"Só tem convicções aquele que não aprofundou nada." 

Emil Cioran
 

Da Ambição e Do Poder



 “Fonte de perturbações, de transtornos ímpares, a loucura política afoga a inteligência, favorece em contrapartida os instintos e mergulha-os num caos salutar. A ideia do bem e sobretudo do mal que imaginamos ser capazes de cumprir regozijar-nos-á e exaltar-nos-á; e o feito das nossas enfermidades, o seu prodígio, será tal que elas nos instituirão senhores de todos e de tudo.
À nossa volta, observaremos uma alteração análoga naqueles que a mesma paixão corrói. Enquanto sofrerem o seu império, serão irreconhecíveis, presas de uma embriaguez diferente de todas as outras. Tudo mudará neles, até o timbre da voz. A ambição é uma droga que faz um demente em potência daquele que se lhe entrega. Esses estigmas, esse ar de fera desvairada, essas linhas inquietas, e como que animadas por um êxtase sórdido, quem não os tiver observado nem em si próprio nem em outrem permanecerá estranho aos malefícios e aos benefícios do Poder, inferno tónico, síntese de veneno e de panaceia.”

Emil Cioran, in História e Utopia



A liberdade, sim, a liberdade!


                                   
        rené magritte
 
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

Álvaro de Campos

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A Importância da Arte


      Rob Gonsalves
Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo. 


Agustina Bessa-Luís, in Dicionário Imperfeito

domingo, 29 de dezembro de 2013

A vida


     Rob Gonsalves
É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo" Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia.
A gente esquece sempre o bem de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!

Florbela Espanca

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Mulher


                          Rob Gonsalves

II

Ó Mulher! Como é fraca e como és forte! 
Como sabes ser doce e desgraçada! 
Como sabes fingir quando em teu peito 
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma image 
Adorada que amaram doidamente! 
Quantas e quantas almas endoidecem 
Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm 
Sem nunca o confessarem a ninguém 
Doces almas de dor e sofrimento! 

Paixão que faria a felicidade 
Dum rei; amor de sonho e de saudade, 
Que se esvai e que foge num lamento!

Florbela Espanca

Eu...

                          Rob Gonsalves
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Há uma música do povo

                          Singer: Mariza

Desejos Vãos



Eu queria ser o Mar de altivo porte 
Que ri e canta, a vastidão imensa! 
Eu queria ser a Pedra que não pensa, 
A pedra do caminho, rude e forte! 

Eu queria ser o Sol, a luz imensa, 

O bem do que é humilde e não tem sorte! 
Eu queria ser a árvore tosca e densa 
Que ri do mundo vão e até a morte! 

Mas o Mar também chora de tristeza ... 

As árvores também, como quem reza, 
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente! 

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia, 

Tem lágrimas de sangue na agonia! 
E as Pedras ... essas ... pisa-as toda a gente! ... 


Florbela Espanca

Pusemos tanto azul nessa distância

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.


Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas

a morder-nos na carne dum segredo.

                              Natália Correia

não deixes que construam um muro de palavras dentro de ti

                    Rob Gonsalves

não deixes que construam um muro de palavras dentro de ti,
porque é no seu silêncio que as tílias perfumam a paixão.
não tenho gatos, nem garras, nem sangue ressequido
com húmus por dentro para te e nos perdoar.
amar é exigir da vida uma existência real,
aperta ao peito tudo o que puderes das noites - só tuas,
e deixa na boca húmida os murmúrios mais secretos.
morde no destino como um profeta nas pedras...
oh! coragem e desejos exangue dos audazes,
há mais sonhos, verdadeiramente honestos e reais,
na brancura dos lençóis que a memória das ciências [desconhecem,
há teoremas que mais não servem de dobradiças enferrujadas
nas portas da existência - nada te dirão que não reconheças,
esperar demais da engenharia ou é estupidez ou infelicidade.

Antígona outrora púrpura de um dia do século vinte e um,
se regressasses, será que regressarias!?
deixe-se orações a uma deusa desconhecida...
sem ti o ódio entre os homens farão deles escravos,
que será do mundo sem os guerreiros da consciência verdadeira?

miguel luaz

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Uma Direcção, e Não Soluções

"A diferença entre solução e direcção é esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça. Ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade. E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista, na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes."

Almada Negreiros


sábado, 14 de dezembro de 2013

Enquanto eu vir o sol luzir nas folhas



Enquanto eu vir o sol luzir nas folhas
E sentir toda a brisa nos cabelos
        Não quererei mais nada.
Que me pode o Destino conceder
Melhor que o lapso sensual da vida
        Entre ignorâncias destas?
Sábio deveras o que não procura,
Que, procurando, achara o abismo em tudo
        E a dúvida em si mesmo.
Pomos a dúvida onde há rosas. Damos
Quase tudo do sentido a entendê-lo
        E ignoramos, pensantes.
Estranha a nós a natureza extensa
Campos ondula, flores abre, frutos
        Cora, e a morte chega.
Terei razão, se a alguém razão é dada,
Quando me a morte conturbar a mente
        E já não veja mais
Que à razão de saber porque vivemos
Nós nem a achamos nem achar se deve,
        Impropícia e profunda.

Ricardo Reis

A mão invisível do vento roça por cima das ervas. [ À la manière de A. Caeiro ]


A mão invisível do vento roça por cima das ervas.
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,
E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.
Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.
Também por mim um desejo inutilmente bafeja
As hastes das intenções, as flores do que imagino,
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.

Ricardo Reis

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais


 toshiko-okanoue

A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais

A alegria humana, vivaz, sobre o caso da vizinha
Da mãe inconsolável a que o filho morreu há um ano

Trapos somos, trapos amamos, trapos agimos — Que trapo tudo que é este mundo!

Álvaro de Campos

sábado, 7 de dezembro de 2013

De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real.

"De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de (as) sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente [...] é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena [...] e triunfante acção, nunca desaparecem o (...) do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer. Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso."

Bernardo Soares

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Cultura e Civilização

Uma mesa cheia de feijões. O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão. O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo. Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas. O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território é o processo da CIVILIZAÇÃO. O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA. É mais difícil a passagem da civilização para a cultura do que a formação de civilização. A civilização é um fenómeno colectivo. A cultura é um fenómeno individual. Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.
Almada Negreiros

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vai alta no céu a lua da Primavera

Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

Alberto Caeiro

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Concentra-te, e serás sereno e forte;

Concentra-te, e serás sereno e forte;
Mas concentra-te fora de ti mesmo.
Não sê mais para ti que o pedestal
No qual ergas a estátua do teu ser.
Tudo mais empobrece, porque é pobre.

Ricardo Reis




domingo, 10 de novembro de 2013

XXVIII - Li hoje quase duas páginas

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

Alberto Caeiro

sábado, 2 de novembro de 2013

Começo a conhecer-me. Não existo.


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Todos dias agora acordo com alegria e pena.



Todos dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei-de ser sozinho.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

Quem ama é diferente de quem é
É a mesma pessoa sem ninguém.

Alberto Caeiro

The sky is a great turquoise shining glee


The sky is a great turquoise shining glee,
All the earth is gathered up in the blue sea
Ev'n the green fields tend thereto in their joy,
The whole day playeth like a happy boy
Among the dales the hours build with their glee.

How happy, had I no cares, would I be!

But there is too much sorrow in mere seeing
The feminine disease of consciousness
Eats like a worm into the source of being.
The very thought I live gives me distress.
My heart is felt by me like some heavy place.

Fernando Pessoa

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Uma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.

Uma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.
Relativamente ao sistema a que pertence, a ficção é uma verdade; o erro, aí, é a desarmonia de ficções.

António Mora

domingo, 27 de outubro de 2013

Saudação a todos quantos querem ser felizes


Saudação a todos quantos querem ser felizes:
Saúde e estupidez!
Isto de ter nervos
Ou de ter inteligência
Ou até de julgar que se tem uma coisa ou outra
Há-de acabar um dia...
Há-de acabar com certeza
Se os governos autoritários continuarem.

Álvaro de Campos


Há uma hora, há uma hora certa



 «Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente gente! olhos, narinas, bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas,
varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos
mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua. (...)»



Mário Cesariny



O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...