sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O apanhador de desperdícios

                                       "Renée Jacobi" (1930)


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.



Manoel de Barros

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Uma didática da invenção

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.


Manoel de Barros

terça-feira, 10 de novembro de 2015

CARTA

                                               toshiko-okanoue

1. se v.exa. me permite
eu gostaria de dizer o que penso.

2. em primeiro lugar penso
que v.exa. anda
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.

3. v.exa. dirá que eu estou afirmando
que v.exa. anda para trás.

4. na verdade, nada me impede de afirmar que
v.exa. anda para trás.
não foi isso porém o que eu disse.

5. com efeito, não sei
se v.exa. anda para trás. segundo penso,
v.exa. anda no sentido oposto ao dos ponteiros
do relógio.

6. seria necessário poder afirmar com toda a
segurança que os ponteiros do relógio
andam para a frente,
para poder afirmar
com igual segurança
que v.exa. anda para trás.

7. mas quem está em condições de
afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente? ninguém está
em condições de afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente, porque, como v.exa. sabe,
os ponteiros do relógio andam à roda.

8. a única coisa que se pode afirmar com toda a
segurança
é que os ponteiros do relógio andam
à roda para um lado e v.exa.
anda à roda para o outro. os ponteiros
do relógio rodam para um lado e v.exa. roda
para o outro. de modo que v.exa. com
o seu movimento anula o movimento
dos ponteiros do relógio e vice-versa.

9. na verdade é como
se v.exa. não andasse e como

se os ponteiros do relógio também não andassem.

Alberto Pimenta

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Toda influência é imoral


                                                   August Sander

“- Não existe boa influência – respondeu Lord Henry. – Toda influência é imoral – imoral do ponto de vista científico -, porque influenciar uma pessoa é dar-lhe sua própria alma. Ela já não pensa com seus próprios pensamentos nem sente suas próprias paixões. Suas virtudes não são reais para ela. Seus pecados, se existem tais coisas, são emprestados. Torna-se um eco da música de outra pessoa. O objetivo da vida é o autodesenvolvimento. Cumprir a própria natureza perfeitamente – essa é a razão por que estamos aqui. As pessoas têm medo de si mesmas, hoje em dia. Esqueceram-se de seu principal dever. Claro que são caridosas: alimentam os famintos, vestem os mendigos. Mas suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. O terror da sociedade, que é a base da moral, e o terror de Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam. Mas eu acredito que se um homem vivesse sua vida completamente, desse forma a todo sentimento, expressão a todo pensamento, a realidade a cada sonho, acredito que o mundo ganharia um impulso novo de alegria. Mas o mais corajoso dos homens tem medo de si mesmo. Cada impulso que lutamos para estrangular aninha-se na mente e nos envenena. O corpo peca uma vez e não tem nada mais a ver com o pecado, pois a ação é um modo de purificação. Nada permanece, a não ser a lembrança de um prazer ou desgosto. A única maneira de se livrar de uma tentação é entregar-se a ela…”


Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray

Visita-me Enquanto não Envelheço


                                                  August Sander
visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto, Salsugem

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Cinismo, Criatividade e Esperança

                            Michelangelo, (gravura), 1530
“O fatalismo colectivo é uma crença em massa de que uma mudança significativa é impossível. Os indivíduos outorgam as suas tomadas de decisões, na expectativa de que alguém vá fazê-las em seu nome, com ou sem o seu consentimento. Isso leva a uma infantilização dos cidadãos, que gozam a sua falta de poder e convertem-se em consumidores solitários, (…) para os quais as compras (o consumo) são seu derradeiro e significativo acto de afirmação, sinalizando um novo tédio que, na falta de alternativas, leva-nos ao fascismo.”
“O trabalho contemporâneo é frenético e, no meio dele, raramente se vê os amigos. A tela do computador é a janela pela qual um mundo sempre desperto e em alerta bombardeia os nossos neurónios com e-mails importantes, spams de Viagra, narcisismos, catástrofes contínuas e pornô do it yourself. Essa mudança ontológica no status do ser humano é uma das razões essenciais para o profundo sentimento do mal-estar e depressão que existe nos jovens adultos de hoje. Esse modo de viver não é suficiente, e quando alguém não é mais capaz, ou escolhe não se comportar como simples consumidor, ou interagir com o mundo por meio de logotipos de publicidade ou aplicativos, a raiva e a frustração crescem.”
“A vida está mais difícil, empobrecida, deprimente e monótona. Isto não é inevitável, e certamente não deveria ser aceitável — mesmo que muitos continuem a ceder ao aspecto sombrio da existência quotidiana, por falta de alternativas credíveis.”
“O poder não pode desaparecer, mas ele pode ser neutralizado quando se difunde entre uma massa igualitária de agentes democráticos o reconhecimento da regra do colectivo, não do individualismo. O capitalismo pode ser desfeito. Isso levar-nos-á a uma perturbação da vida social que temos e, inicialmente, a um período de conflitos sociais profundos, mas a história das sociedades humanas demonstra que as culturas não são, em essência, nem “boas” nem “más”, como afirmam muitos dos críticos morais e defensores do capitalismo. O certo é que as pessoas gostam mais de diálogos, da amizade e da generosidade do que do consumo e do trabalho.”
“O optimismo não pode significar a construção colectiva de mentiras convenientes, para tornar as pessoas infelizes mais capazes de enfrentar os seus infortúnios. Ao invés disso, ele articula a criatividade necessária para ir além dos meios hoje existentes e envolver-se num patamar de actividade novo e desconhecido. O optimismo é criativo… O pessimismo é reaccionário… Sua incapacidade de dar conta da natureza violenta do desejo, tanto cultural quanto biológico, o conduz a uma submissão cínica. O neoliberalismo é um sistema poderoso deste tipo.”


J. D. Taylor, Negative Capitalism: Cynicism in the Neoliberal Era

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O culto do Kitsch



                               Andy Warhol

"Porque o Kitsch mutila a Arte. O Kitsch é a cegueira. O Kitsch é a ideia falsificada da Perfeição. É a negação dos aspectos negativos das infraestruturas que servem de suporte a uma sociedade. É a negação da existência da merda”.


Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...