sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Caranguejola

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira -
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me p'rà enfermaria! -
Isto é, p'ra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou. 
 
Mário de Sá-Carneiro 
Paris, Novembro 1915
 
 

Interrogação

Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma da charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize para onde eu vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra…
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Florbela Espanca

Se tu viesses ver-me

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

"Se penetrássemos o sentido da vida seríamos menos miseráveis."

Florbela Espanca, in Correspondência (1926)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Há-de flutuar uma cidade

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

Al Berto

terça-feira, 22 de janeiro de 2013


“Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens (…) A velharia poética participava bastante na minha alquimia do verbo (...) Acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito (…) Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novos idiomas.”

A. Rimbaud, Une Saison en Enfer (trad. uma temporada no Inferno)
“Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos.”

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego

sábado, 19 de janeiro de 2013

“O estilo é a criação da dignidade.

O sentido da literatura, no meio de muitos que tenha ou não tenha, é que ela mantém, purificadas das ameaças da confusão, as linhas de força que configuram a equação da consciência e do acto, com as suas tensões e fracturas, suas ambivalências e ambiguidades, suas rudes trajectórias de choque e fuga. O autor é o criador de um símbolo heróico: a sua própria vida.”

Herberto Helder, in Photomaton & Vox
"Ser imortal é coisa sem importância. Excepto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal. Já notei que, embora desagrade às religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que dedicam ao primeiro século prova que apenas crêem nele, e destinam todos os outros, em número infinito, para o premiar ou para o castigar."

Jorge Luís Borges, in "O Imortal"
 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A Inigualável

Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de cetim...
Teus dedos longos, de marfim,
Que os sombreassem jóias pretas...

E tão febril e delicada
Que não pudesse dar um passo -
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de cor no regaço...

Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas...

Ah! que as tuas nostalgias fossem guizos de prata -
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata...
……………

Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim -
Os teus espasmos, de seda...

Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim...

Mário de Sá-Carneiro

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Se os tubarões fossem homens - Bertold Brecht

Se os tubarões fossem homens, perguntou a filha de sua senhoria ao senhor K., seriam eles mais amáveis para com os peixinhos?

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

alberto caeiro poema XXIX

dito por miguel.luaz

monsieur jérôme não sai de casa

monsieur jérôme não sai de casa,
despoja as paredes dos quadros para não raptarem as sombras,
brancura enevoada da alma sonâmbula
envolto no robe adormece os lábios,
dizia sossegando-se « são fragrância aquosas... »
falava do mofo do pó da sua alergia anafiláctica,
contenção espirro o gato salta de cima do colo.
uma chuva intensa sangrou a pupila.
monsieur jérôme não sai de casa,
suicidou-se pela madrugada escurecida
a bala ficou alojada no cérebro
onde ocorreu a sua última imagem
- quis ser depois, não agora

entregou seus poemas ao fogo por prudência.

miguel.luaz


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

é preciso repensar a nossa vida


"É preciso repensar a nossa vida. Repensar a cafeteira do café, de que nos servimos de manhã, e repensar uma grande parte do nosso lugar no universo. Talvez isso tenha a ver com a posição do escritor, que é uma posição universal, no lugar de Deus, acima da condição humana, a nomear as coisas para que elas existam. Para que elas possam existir… Isto tem a ver com o poeta, sobretudo, que é um demiurgo. Ou tem esse lado. Numa forma simples, essa maneira de redimensionar o mundo passa por um aspecto muito profundo, que não tem nada a ver com aquilo que existe à flor da pele. Tem a ver com uma experiência radical do mundo.
Por exemplo, com aquela que eu faço de vez em quando, que é passar três dias como se fosse cego. Por mais atento que se seja, há sempre coisas que nos escapam e que só podemos conhecer de outra maneira, através dos outros sentidos, que estão menos treinados… Reconhecer a casa através de outros sentidos, como o tacto, por exemplo. Isso é outra dimensão, dá outra profundidade. E a casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo."

Al Berto



domingo, 9 de dezembro de 2012

(excerto)
Cena do Ódio - Foi escrito por Almada Negreiros durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915 - A Álvaro de Campos a dedicação intensa de todos os meus avatares.
(...)

Tu que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho-Marítimo da Índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas terras
e que trouxeste de lá  mais Chatos pr’aqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...

(...)

Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres

(...)

Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais!
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!

(...)

Olha para ti!
Se te não vês, concentra-te, procura-te!
Encontrarás primeiro o alfinete
que espetaste na dobra do casaco,
e depois não percas o sítio,
porque estás decerto ao pé do alfinete.
Espeta-te nele pra não te perderes de novo,
e agora observa-te!
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!
Não te odeies ainda qu' inda agora começaste!

(...)

Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?



(excerto)
(...)

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? 
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. 
Assim, como sou, tenham paciência! 
Vão para o diabo sem mim, 
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! 
Para que havemos de ir juntos?

(...)

Álvaro de Campos, in Lisbon Revisited, l923


O amor lança fora o medo

Photo: Toshiko Okanoue "O amor lança fora o medo; mas, inversamente, o medo lança fora o amor. E não só o amor. O medo também expulsa a...