terça-feira, 24 de novembro de 2015
RUBRICA OLHARES
Nós
dizemos revolução - Por Beatriz Preciado
Parece que os gurus da velha Europa
se obstinam ultimamente a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy,
Indignados, handi-trans-gays-lésbicas-intersex e postporn que não poderemos
fazer a revolução porque não temos uma ideologia. Eles dizem “uma ideologia”
como minha mãe dizia “um marido”. Pois bem, não precisamos nem de ideologia nem
de marido. As novas feministas, não precisamos de marido porque não somos
mulheres. Assim como não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem
comunismo nem liberalismo. Nem o refrão católico-muçulmuno-judeu. Falamos uma
outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles
dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós
dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e
interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança
multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos
montemos nos cavalos para fugir juntos do batedouro global. Eles dizem poder.
Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles
dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual,
Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade
já não funciona mais… Quanto de Galileu precisaremos desta vez para re-aprender
a nomear as coisas, nós mesmos? Eles nos fazem a guerra econômica a golpe de
facão digital neo-liberal. Mas nós não choraremos a morte do
Estado-providência, porque o Estado-providência era também o hospital
psiquiátrico, o centro de inserção das pessoas com deficiência, a prisão, a
escola patriarcal-colonial-heterocentrada. Está na hora de pôr Foucault na
dieta handi-queer e de escrever a morte da Clínica. Está na hora de convidar
Marx para um ateliê eco-sexual. Não vamos adotar o estado disciplinar contra o
mercado neoliberal. Esses dois já travaram um acordo: na nova Europa, o mercado
é a única razão governamental, o Estado se tornou o braço punitivo cuja única
função será aquela de re-criar a ficção da identidade nacional por meio do medo
securitário. Nós não desejamos nos definir como trabalhadores cognitivos nem
como consumidores farmacopornográficos. Nós não somos Facebook, nem Shell, nem
Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não desejamos produzir francês, e tampouco europeu.
Não desejamos produzir. Nós somos a rede viva descentralizada. Nós recusamos uma
cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução.
Nós queremos uma cidadania total definida pelo compartilhamento das técnicas,
dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a guerra limpa
se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é
a paz, o afeto total. Eles dizem crise, nós dizemos revolução.
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
Tratado geral das grandezas do ínfimo
John Gutmann
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
O apanhador de desperdícios
"Renée Jacobi" (1930)
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Manoel de Barros
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
Uma didática da invenção
I
Para apalpar as
intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O
pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até
ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas
do Ínfimo estava
escrito:
escrito:
Poesia é quando a tarde
está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras
entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm
nome são mais pronunciadas
por crianças.
por crianças.
VII
No descomeço era o
verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou
de Deus: foi em
Van Gogh.
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de
árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das
pedras.Manoel de Barros
terça-feira, 10 de novembro de 2015
CARTA
toshiko-okanoue
1. se v.exa. me permite
eu gostaria de dizer o que penso.
2. em primeiro lugar penso
que v.exa. anda
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.
3. v.exa. dirá que eu estou afirmando
que v.exa. anda para trás.
4. na verdade, nada me impede de afirmar que
v.exa. anda para trás.
não foi isso porém o que eu disse.
5. com efeito, não sei
se v.exa. anda para trás. segundo penso,
v.exa. anda no sentido oposto ao dos ponteiros
do relógio.
6. seria necessário poder afirmar com toda a
segurança que os ponteiros do relógio
andam para a frente,
para poder afirmar
com igual segurança
que v.exa. anda para trás.
7. mas quem está em condições de
afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente? ninguém está
em condições de afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente, porque, como v.exa. sabe,
os ponteiros do relógio andam à roda.
8. a única coisa que se pode afirmar com toda a
segurança
é que os ponteiros do relógio andam
à roda para um lado e v.exa.
anda à roda para o outro. os ponteiros
do relógio rodam para um lado e v.exa. roda
para o outro. de modo que v.exa. com
o seu movimento anula o movimento
dos ponteiros do relógio e vice-versa.
9. na verdade é como
se v.exa. não andasse e como
se os ponteiros do relógio também não andassem.
Alberto Pimenta
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Toda influência é imoral
August Sander
“- Não existe boa influência –
respondeu Lord Henry. – Toda influência é imoral – imoral do ponto de vista
científico -, porque influenciar uma pessoa é dar-lhe sua própria alma. Ela já
não pensa com seus próprios pensamentos nem sente suas próprias paixões. Suas
virtudes não são reais para ela. Seus pecados, se existem tais coisas, são
emprestados. Torna-se um eco da música de outra pessoa. O objetivo da vida é o
autodesenvolvimento. Cumprir a própria natureza perfeitamente – essa é a razão
por que estamos aqui. As pessoas têm medo de si mesmas, hoje em dia.
Esqueceram-se de seu principal dever. Claro que são caridosas: alimentam os
famintos, vestem os mendigos. Mas suas próprias almas morrem de fome e estão
nuas. O terror da sociedade, que é a base da moral, e o terror de Deus, que é o
segredo da religião, são as duas coisas que nos governam. Mas eu acredito que
se um homem vivesse sua vida completamente, desse forma a todo sentimento,
expressão a todo pensamento, a realidade a cada sonho, acredito que o mundo
ganharia um impulso novo de alegria. Mas o mais corajoso dos homens tem medo de
si mesmo. Cada impulso que lutamos para estrangular aninha-se na mente e nos
envenena. O corpo peca uma vez e não tem nada mais a ver com o pecado, pois a
ação é um modo de purificação. Nada permanece, a não ser a lembrança de um
prazer ou desgosto. A única maneira de se livrar de uma tentação é entregar-se
a ela…”
Oscar Wilde, O Retrato
de Dorian Gray
Visita-me Enquanto não Envelheço
August Sander
visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de
malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas
paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
com teu sabor de açúcar queimado em
redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
Al Berto, Salsugem
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
Cinismo, Criatividade e Esperança
Michelangelo, (gravura), 1530
“O fatalismo colectivo é uma
crença em massa de que uma mudança significativa é impossível. Os indivíduos
outorgam as suas tomadas de decisões, na expectativa de que alguém vá fazê-las em
seu nome, com ou sem o seu consentimento. Isso leva a uma infantilização dos cidadãos,
que gozam a sua falta de poder e convertem-se em consumidores solitários, (…)
para os quais as compras (o consumo) são seu derradeiro e significativo acto de afirmação,
sinalizando um novo tédio que, na falta de alternativas, leva-nos ao fascismo.”
“O trabalho contemporâneo é
frenético e, no meio dele, raramente se vê os amigos. A tela do computador é a
janela pela qual um mundo sempre desperto e em alerta bombardeia os nossos neurónios com e-mails importantes, spams de Viagra, narcisismos, catástrofes contínuas e
pornô do it yourself. Essa mudança ontológica no status do ser humano é uma das razões essenciais para o profundo
sentimento do mal-estar e depressão que existe nos jovens adultos de hoje. Esse
modo de viver não é suficiente, e quando alguém não é mais capaz, ou escolhe
não se comportar como simples consumidor, ou interagir com o mundo por meio de
logotipos de publicidade ou aplicativos, a raiva e a frustração crescem.”
“A vida está mais
difícil, empobrecida, deprimente e monótona. Isto não é inevitável, e
certamente não deveria ser aceitável — mesmo que muitos continuem a ceder ao
aspecto sombrio da existência quotidiana, por falta de alternativas credíveis.”
“O poder não pode desaparecer,
mas ele pode ser neutralizado quando se difunde entre uma massa igualitária de agentes
democráticos o reconhecimento da regra do colectivo, não do individualismo. O
capitalismo pode ser desfeito. Isso levar-nos-á a uma perturbação da vida social
que temos e, inicialmente, a um período de conflitos sociais profundos, mas a
história das sociedades humanas demonstra que as culturas não são, em essência,
nem “boas” nem “más”, como afirmam muitos dos críticos morais e defensores do
capitalismo. O certo é que as pessoas gostam mais de diálogos, da amizade e da generosidade do que do consumo e do trabalho.”
“O optimismo não pode significar a construção colectiva de
mentiras convenientes, para tornar as pessoas infelizes mais capazes de
enfrentar os seus infortúnios. Ao invés disso, ele articula a criatividade
necessária para ir além dos meios hoje existentes e envolver-se num patamar de
actividade novo e desconhecido. O optimismo é criativo… O pessimismo é
reaccionário… Sua incapacidade de dar conta da natureza violenta do desejo,
tanto cultural quanto biológico, o conduz a uma submissão cínica. O neoliberalismo
é um sistema poderoso deste tipo.”
J. D.
Taylor, Negative Capitalism: Cynicism in the Neoliberal Era
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
O culto do Kitsch
Andy Warhol
"Porque o Kitsch mutila a Arte. O Kitsch é a
cegueira. O Kitsch é a ideia falsificada da Perfeição. É a negação dos aspectos
negativos das infraestruturas que servem de suporte a uma sociedade. É a negação da existência da merda”.
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
terça-feira, 20 de outubro de 2015
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
Irei
pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio acompanha a
manhã.
Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas de céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava — uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou dum pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.
E desejo só cores. As cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. Cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor — e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez voltará à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca das cores.
(Cesare Pavese "Trabalhar Cansa", Cotovia, trad.
de Carlos Leite)
sábado, 3 de outubro de 2015
Mito
Virá o dia em que o jovem deus será um homem,
sem sofrimento, com o morto sorriso do homem
que compreendeu. Também o sol se move longínquo
avermelhando as praias. Virá o dia em que o deus
já não saberá onde eram as praias de outrora.
Acorda-se uma manhã em que o Verão morreu,
e nos olhos tumultuam ainda esplendores
como ontem e no ouvido os fragores do sol
feito sangue. A cor do mundo mudou.
A montanha já não toca o céu; as nuvens
já não se amontoam como frutos; na água
já não transparece um seixo. O corpo dum homem
curva-se pensativo onde um deus respirava.
O grande sol acabou, e o cheiro da terra
e a rua livre, colorida de gente
que ignorava a morte. Não se morre de Verão.
Se alguém desaparecia, havia o jovem deus
que vivia por todos e ignorava a morte.
Nele a tristeza era uma sombra de nuvens.
O seu passo pasmava a terra.
Agora pesa
o cansaço sobre todos os membros do homem,
sem sofrimento: o calmo cansaço da madrugada
que abre um dia de chuva. As praias sombreadas
não conhecem o jovem a quem outrora bastava
que as olhasse. Nem o mar do ar revive
na respiração. Cerram-se os lábios do homem
resignados, para sorrir frente à terra.
Cesare Pavese, 'Trabalhar Cansa'
com a tradução de Carlos Leite
Valentin Feldman
Em 1942, jovem filósofo francês Valentin Feldman, integrante da Resistência Francesa, diante de um pelotão de fuzilamento formado por soldados do Governo de Vichy, aliado dos nazistas, gritou para seus algozes, segundos antes de eles dispararem:
- Imbecis, é por vocês que vou morrer!
sexta-feira, 18 de setembro de 2015
MIOPIA
não te sentes capaz de entender
o dia de hoje, baby?
espera que ele seja o dia de ontem.
nâo te sentes capaz de entender
o dia de ontem, baby?
espera que ele seja o dia de amanhâ.
nâo te sentes capaz de entender
o dia de amanhâ, baby?
espera que ele seja o dia de hoje.
Alberto Pimenta
Louvor do Revolucionário
Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?
Onde quer que todos calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.
Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.
Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.
Bertold Brecht, Lendas,
Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas (Tradução de Paulo Quintela)
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Viver Sempre também Cansa
Alberto Pimenta, in “Rise of the Ten Tastes Mouth”
Viver sempre
também cansa.
O sol é
sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul,
nitidamente azul,
ora é
cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca
tem a cor inesperada.
O mundo não
se modifica.
As árvores
dão flores,
folhas,
frutos e pássaros
como
máquinas verdes.
As paisagens
também não se transformam.
Não cai neve
vermelha,
não há
flores que voem,
a lua não
tem olhos
e ninguém
vai pintar olhos à lua.
Tudo é
igual, mecânico e exacto.
Ainda por
cima os homens são os homens.
Soluçam,
bebem, riem e digerem
sem
imaginação.
José Gomes
Ferreira, Viver Sempre também Cansa
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Discurso do filho da puta
O pequeno filho da puta
é sempre
um pequeno filho da puta;
mas não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho da puta.
no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho da puta.
de resto,
os filhos da puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho da puta.
o pequeno
filho da puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho da puta.
no entanto,
o pequeno filho da puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho da puta.
todos os grandes
filhos da puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
dentro do
pequeno filho da puta
estão em ideia
todos os grandes filhos da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
o pequeno filho da puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho da puta.
é o pequeno filho da puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
de resto,
o pequeno filho da puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho da puta:
o pequeno filho da puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho da puta.
II
o grande filho da puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho da puta,
e não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
no entanto,
há filhos da puta
que já nascem grandes
e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho da puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande filho da puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho da puta.
por isso
o grande filho da puta
tem orgulho em ser
o grande filho da puta.
todos
os pequenos filhos da puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
dentro do
grande filho da puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos da puta,
diz o
grande filho da puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos da puta,
diz
o grande filho da puta.
o grande filho da puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho da puta.
é o grande filho da puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho da puta,
diz o
grande filho da puta.
de resto,
o grande filho da puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho da puta:
o grande filho da puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,
o grande filho da puta.
Alberto Pimenta
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